Avançar para o conteúdo principal

João Rendeiro e Criminalidade Transfronteiriça: Porquê a África do Sul?



 O que move Rendeiro não é o investimento na África do Sul. A autorização, se acontecesse, permitir-lhe-ia não só escapar a crimes de burla, falsificação de contabilidade e afins, cometidos em Portugal, como também escapar a crimes de branqueamento e de fraude fiscal


As imagens e a sua sequência chocaram e confundiram, pela vertigem do luxo ao castigo. João Rendeiro, o banqueiro de olhar arrogante, acima da lei, menosprezando as câmaras das televisões. As câmaras ávidas de crivo democrático a filmarem a exclusiva Quinta Patino. As câmaras a filmarem depois Rendeiro detido, a foto em pijama, o aparthotel na zona chique de Durban, a prisão de alta segurança; disseram-nos que Rendeiro partilha uma cela com homicidas e foi ameaçado, a sala de audiências ficou sem eletricidade, o tribunal sem internet.


Perguntamo-nos porquê a África do Sul, porquê arriscar uma detenção ali, quando não há laços conhecidos entre Rendeiro e o país, e onde as condições de segurança, salubridade e conforto serão – não é difícil imaginar - muito piores do que as existentes nas prisões portuguesas.


Dizem-nos que Rendeiro espera um certificado de residência por investimentolibertando-o da justiça portuguesa. Googlamos. Encontramos um acordo de cooperação entre Portugal e a África do Sul no domínio policial, no qual a corrupção, o crime organizado, o branqueamento e outros crimes económicos estão abrangidos, mas a extradição está expressamente excluída.


Na página da internet sobre a residência para investidores na África do Sul e aautorização para um negócio permanente, podemos ler que este programa está acessível, entre outros, a investidores cujo património líquido seja de pelo menos 12 milhões de rands sul-africanos (cerca de 680 mil euros); a reformados com um rendimento mensal mínimo de 37 mil rands (cerca de 2 mil euros); a quem invista na África do Sul, através de um negócio novo ou existente, e cuja contribuição de capital, em nova maquinaria ou equipamento, não seja inferior a 5 milhões de rands (cerca de 283 mil euros). Após aprovação do pedido para autorização de residência, o candidato deve pagar 120 mil rands imediatamente ao Diretor-Geral (cerca de 6800 euros).


Além do mais, é exigido o pagamento de uma taxa de 1520 rands (cerca de 86 euros). O tempo de espera é de 8 semanas para a obtenção do visto temporário e um mínimo de 8 meses para a obtenção da autorização permanente de residência. É fácil perceber que os montantes são irrisórios para um banqueiro ou outro homem de negócios europeu. Por outro lado, o investimento num negócio é uma das possibilidades, mas não condição única para a obtenção do certificado especial de residência.


O que move Rendeiro não é o investimento na África do Sul. A autorização, se acontecesse, permitir-lhe-ia não só escapar a crimes de burla, falsificação de contabilidade e afins, cometidos em Portugal – dada a ausência de um tratado de extradição - , como também escapar a crimes de branqueamento e de fraude fiscal. Residente na África do Sul, Rendeiro contornaria a troca automática de informações entre os países onde depositou os montantes - fruto dos crimes cometidos em Portugal -, e Portugal.


Rendeiro pode apresentar a sua nova residência e, se for o caso, um passaporte sul-africano, e com eles abrir novas contas bancárias em territórios de baixa tributação. Cancela as contas anteriores. Neste caso, as instituições financeiras não prestarão informações a Portugal. E se os territórios onde forem abertas as contas bancárias não trocarem informações com a África do Sul, os montantes ficam ocultos. A África do Sul não tem acordos de troca de informações com alguns territórios incluídos na lista negra da União Europeia: Fiji, Guam, Palau, Panamá, Trindade e Tobago, Ilhas Virgem Norte-Americanas.


O esquema potencialmente utilizado por Rendeiro é semelhante aos esquemas disponibilizados pelos programas de cidadania por investimento – os vistos gold. Alguns destes são identificados na página da OCDE como de elevado risco para o movimento da troca automática de informações, o qual pretende assegurar a tributação de rendimentos transfronteiriços. A troca automática de informações reduziu drasticamente a evasão fiscal ao nível bilateral, mas grande parte dos evasores não repatriou os seus fundos e encontrou novas formas de os esconder (Johannesen e Zucman, 2014; Miethe e Menkhoff, 2019). Os vistos gold parecem ser a principal forma, ao reduzirem as probabilidades de deteção individual e tornarem menos provável que os países troquem informações (Langenmayr e Zyska, 2021). Estes programas têm algumas características em comum: não exigem um tempo mínimo de permanência no território; concedem tratamentos fiscais favoráveis; e não há acordos de extradição.


O plano de Rendeiro talvez não produza o efeito por ele esperado. Mas revela bem a criminalidade económica e financeira internacional: segmentada, explora legislações nacionais com estratégias antagónicas; é alimentada por uma gigantesca rede de profissionais de alto nível, incluindo jurídicos, mercados financeiros, bancos offshore; serve-se da colaboração dos Estados e da corrupção de altos funcionários; coloca em risco as democracias.


Por isso, para combater a criminalidade transfronteiriça, é necessária uma coordenação mundial da legislação contra o crime bancário, financeiro, aduaneiro e acordos de extradição. E as estratégias mundiais de desenvolvimento também devem incorporar o problema do crime para evitar a adoção de programas estaduais que o favoreçam.


https://amp.expresso.pt/opiniao/2021-12-28-Joao-Rendeiro-e-Criminalidade-Transfronteirica-Porque-a-Africa-do-Sul--cce52f6b

Comentários

Notícias mais vistas:

"Assinatura" típica do Kremlin: desta vez foi pior e a Rússia até atacou instalações da UE

Falamos de "um dos maiores ataques combinados" contra a Ucrânia, que também atingiu representações de países da NATO Kiev foi novamente bombardeada durante a noite. Foi o segundo maior ataque aéreo da Rússia desde a invasão total à Ucrânia. Morreram pelo menos 21 pessoas, incluindo quatro crianças, de acordo com as autoridades. Os edifícios da União Europeia e do British Council na cidade foram atingidos pelos ataques, o que levou a UE e o Reino Unido a convocarem os principais diplomatas russos. Entre os mortos encontram-se crianças de 2, 17 e 14 anos, segundo o chefe da Administração Militar da cidade de Kiev. A força aérea ucraniana afirmou que o Kremlin lançou 629 armas de ataque aéreo contra o país durante a noite, incluindo 598 drones e 31 mísseis. Yuriy Ihnat, chefe de comunicações da Força Aérea, disse à CNN que os foi “um dos maiores ataques combinados” contra o país. O ministério da Defesa da Rússia declarou que atacou “empresas do complexo militar-industrial e base...

Avião onde viajava Von der Leyen afetado por interferência de GPS da Rússia

 O GPS do avião onde viajava a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, foi afetado por uma interferência que as autoridades suspeitam ser de origem russa, no domingo, forçando uma aterragem com mapas analógicos. Não é claro se o avião seria o alvo deliberado. A aeronave aterrou em segurança no Aeroporto Internacional de Plovdiv, no sul da Bulgária, sem ter de alterar a rota. "Podemos de facto confirmar que houve bloqueio do GPS", disse a porta-voz da Comissão Europeia, Arianna Podesta, numa conferência de imprensa em Bruxelas. "Recebemos informações das autoridades búlgaras de que suspeitam que se deveu a uma interferência flagrante da Rússia". A região tem sofrido muitas destas atividades, afirmou o executivo comunitário, acrescentando que sancionou várias empresas que se acredita estarem envolvidas. O governo búlgaro confirmou o incidente. "Durante o voo que transportava a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para Plovdiv, o s...

O maior aliado da Rússia a defender a Ucrânia: eis a proposta de Trump

 Proposta de Trump foi apresentada aos aliados e à Ucrânia na reunião na Casa Branca. A ideia não caiu nada bem, até porque já tinha sido sugerida anteriormente por Putin. Tropas norte-americanas nunca farão parte das garantias de segurança a dar à Ucrânia e isso já se sabia, mas a proposta do presidente dos Estados Unidos é, no mínimo, inquietante para Kiev, já que passa por colocar soldados amigos da Rússia a mediar o conflito. De acordo com o Financial Times, que cita quatro fontes familiarizadas com as negociações, o presidente dos Estados Unidos sugeriu que sejam destacadas tropas chinesas como forças da paz num cenário pós-guerra. Uma proposta que, segundo as mesmas fontes, vai ao encontro do que Vladimir Putin sugeriu, até porque a China é um dos mais fortes aliados da Rússia, mesmo que tenha mantido sempre uma postura ambígua em relação ao que se passa na Ucrânia. A proposta de Trump passa por convidar a China a enviar pacificadores que monitorizem a situação a partir de um...