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A bitcoin não destrói o planeta


Pedro Febrero - Investigador e Professor


Mentiria se dissesse que fiquei abismado quando, ao abrir as páginas de notícias na internet, me deparo com mais um ‘pseudo-especialista’ a escrever sobre o que desconhece... a bitcoin. Considerando que o autor defendeu em 9 de junho de 2019 o ‘direito à pornografia’ no mundo digital, e ainda definiu a internet como um espaço que «não respeita fronteiras nem se chateia com limitações geográficas», diria que só para um bom filme de comédia se aplicaria o título ‘Está na altura de destruir a blockchain’. 

Neste conto, o protagonista principal é Diogo Andrade, que nos deixou pérolas como: «As criptomoedas que dela (blockchain) dependem precisam de ser arrastadas para o lixo»; «As Bitcoins (...) só consomem energia que está a destruir rapidamente o meio ambiente de que o planeta depende para continuar vivo»; «sem a criação de qualquer valor social, promovem-se transações financeiras que alimentam uma estrutura altamente danosa para todo o planeta».

A única razão pela qual aconselho vivamente a leitura do artigo é pelas valentes gargalhadas que vos vai oferecer.
Vendo as coisas como elas são, deveria estar mais agradecido ao Diogo, se não fossem as várias falácias partilhadas. 

Recorrendo a argumentos usados pelo autor explicarei as falácias, de modo a que o leitor possa perceber o porquê da bitcoin consumir muita energia. No fim, o juízo de valor será seu. Vamos por partes. 

A bitcoin gasta muita energia? Sim.

«E o problema de base é que este consumo energético não é um defeito casual, é a raiz de todo o sistema blockchain em que se baseia a bitcoin – e esse sistema pressupõe um desperdício brutal, devido ao modelo matemático aplicado», diz o Diogo Andrade, «está na altura de destruir a blockchain».

Na sua hilariante peça sobre os ‘problemas’ da blockchain e da bitcoin, o Diogo comete, primeiramente, o erro de não explicar o que separa uma blockchain de uma criptomoeda. Neste caso, o que separa a bitcoin (uma das muitas criptomoedas que existem), da blockchain. 

Essencialmente, nada. São a mesma coisa. O que quero dizer, é que uma blockchain apenas faz sentido (em 99% dos casos), caso exista uma criptomoeda associada. Caso contrário, uma blockchain é apenas uma base-de-dados distribuída por muitos utilizadores (peers).

Para mais, existem centenas de algoritmos de consenso alternativos que permitem que protocolos distribuídos funcionem na sua plenitude, sem gastar tanta energia como a bitcoin. 

Vamos voltar agora ao ponto principal do excerto que citei: a bitcoin gasta muita energia e está a destruir o planeta. Até a data, a bitcoin gasta cerca de 159 EH/s, ou ExaHashes, o que significa mais de um quintilhão de hashes por segundo. Obviamente que para grande parte das pessoas isto não significa absolutamente nada.

Neste momento, alguns estudos indicam que a quantidade cumulativa de energia usada na rede bitcoin durante um ano, é equivalente à pegada de carbono de duas Irlandas ou à energia total gasta pelo Chile. No gráfico em cima podem observar o potencial consumo energético da rede bitcoin em percentagem da energia consumida por alguns países. Nos casos mais extremos, a bitcoin consome 110% da energia da República Checa, e 65.7% da energia da Holanda.

Se a bitcoin consome assim tanta energia, quer isto dizer que ela é um perigo para o meio ambiente? 
Depende. Se acreditar em meias-verdades, talvez. Mas se quisermos analisar a história no seu todo, rapidamente percebemos que os argumentos descritos não são totalmente factuais.

A bitcoin vai destruir o planeta? Não.

«Mesmo com tudo o que esta tecnologia tem de bom, os danos ambientais que causa são demasiado elevados», diz Diogo Andrade. «Está na altura de destruir a blockchain», acrescenta. 


 
Tal como discuti no meu artigo anterior, a quantidade de energia gasta na produção e validação de blocos, não está de todo relacionada com o número de transações ou de utilizadores. O que significa é que não existe nenhum tipo de relação entre o consumo total energético da bitcoin e o número de transações. Se, amanhã, cada bloco de transações da bitcoin duplicasse o seu tamanho em ou se o número de utilizadores triplicasse, não seria necessário duplicar nem triplicar o número de mineradores, nem de energia que a rede de bitcoin consome. 

Para além disso, não é pela rede da bitcoin gastar muita energia que isso é mau. Muito pelo contrário. Antes de vos dar a minha opinião sobre as principais vantagens do alto consumo energético da bitcoin, permitam-me que ainda sublinhe que estima-se que cerca de 39% da energia que a bitcoin consome seja proveniente de renováveis, e que cerca de 30% de toda a energia consumida pela bitcoin provém de energia geotermal, nomeadamente da Islândia.
 
Independentemente da energia que a bitcoin consome ser oriunda de combustíveis fósseis ou renováveis, é importante referir que quanto mais energia a rede da bitcoin consome para produzir e validar um novo bloco, mais segura ela é. 

Isto porque para atacar a rede da bitcoin, é necessário gastar mais energia do que aquela que está a ser usada pelos moradores ‘bons’. Dessa forma, torna-se impraticável efetuar um ataque com sucesso à rede da bitcoin, porque o custo de deter mais de 51% de todo o poder computacional da rede da bitcoin, requer o uso de 51%, ou mais, de toda a energia a ser consumida pela rede da bitcoin. 

Para mais, na verdade, a bitcoin não gasta mais energia do que a Argentina ou o Chile. De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), a Argentina consumiu um total de 80 megatoneladas de óleo (Mtep) em 2018, o que equivale a 930 TWh de eletricidade. Ou, dito de outra forma, a Argentina sozinha usa sete vezes mais energia do que a mineração de bitcoin. E a Argentina não é uma nação com muita sede energética. 

O que quero dizer é que os estudos referenciados pelo autor, deixam de lado uma quantidade muito grande de energia consumida pelos países, em forma de petróleo ou gás. Os consumidores comuns usam efetivamente mais watt/hora de gás, óleo, gasolina ou diesel, do que propriamente eletricidade. 

Desta forma, podemos afirmar com certeza que as nações e economias usam muito mais energia térmica proveniente do carvão, petróleo e gás, do que eletricidade proveniente de outras fontes. 

Para pôr um fim a esta discussão da energia gasta pela bitcoin, gostaria de citar a IEA que afirma que o consumo total de energia mundial, em 2019, foi de 14.385 Mtep, ou seja, 167,000 TWh. A mineração de bitcoins é, portanto, responsável por menos de um milésimo do uso total de energia no mundo.

A bitcoin não tem valor?

«As bitcoin são, tão simplesmente, o maior desperdício de recursos na história da humanidade. Não têm qualquer valor real, não se anexam a qualquer atividade humana nem produzem qualquer bem nem valor» diz Diogo Andrade: «Está na altura de destruir a blockchain», acrescenta. 
 

Até agora, confirmamos que qualquer narrativa pejorativa sobre a quantidade de energia que a rede da bitcoin consome, ou irá consumir, é uma falácia. Para arrebatar, acrescento que o valor total de mercado da bitcoin é inequivocamente superior ao PIB de Portugal. 

De qualquer forma, o autor acredita que toda a energia gasta na bitcoin, um ativo sem qualquer valor, é um desperdício, ou seja Diogo Andrade acredita que a energia que é usada para validar blocos e garantir a segurança da rede bitcoin, deveria ser usada para melhores fins. 

Será que esse argumento faz mesmo sentido? Lembra-me aquela lógica do: se deixasses de fumar poupas $20 por semana, e se somarmos isso tudo ao fim de um ano, rouparias mais de $1,000! 

O que quero dizer é que não é certo que a energia que poderia ser poupada caso a bitcoin não existisse, fosse gasta de melhor forma. Para mais, esse argumento não contempla os avanços na produção de chips que foram financiados pela bitcoin, por exemplo. Uma externalidade positiva que afeta, potencialmente, todo o setor de fabrico de chips de silicone – um pequeno objeto que vive na maioria dos aparelhos eletrónicos. 

Não é que a eletricidade que, de outra forma, poderia fornecer energia a outros usos, deva ser sacrificada, muito pelo contrário: nunca teremos eletricidade para esses outros usos, se não tivermos um sistema monetário sólido para coordenar a atividade económica e organizar os recursos. Na prática, a bitcoin não compete pelos mesmos recursos energéticos que abastecem as funções produtivas e de consumo básicas da nossa economia. Pelo contrário, a função da bitcoin – como um sistema monetário – é a de garantir que essas necessidades de energia possam continuar a ser satisfeitas.

Usando as palavras do Diogo Andrade, o que seria efetivamente destrutível para o ambiente e, para o nosso país, seria seguirmos as pegadas da Venezuela. 

Conclusão

Proponho que em vez de nos debruçarmos sobre problemas que ainda não existem, como é o caso da bitcoin ser uma ameaça ao meio ambiente, o mais importante nos dias de hoje é explicar a importância da bitcoin como uma solução para o sistema de dinheiro fiduciário que assombra as economias mundiais.

Concluo: todo o valor é subjetivo, e o valor da bitcoin não deve ser apenas medido pela energia que consome, até porque diariamente são transacionados vários biliões de dólares na sua rede. 

Nunca se esqueçam que o valor gasto em energia pela bitcoin é pago pelos utilizadores que, sabendo que irão pagar uma taxa de transação, mesmo assim, escolhem usar uma moeda descentralizada. Já viram como o capitalismo e os mercados livres podem funcionar num sistema tão elegante como o da bitcoin? O poder da escolha é indestrutível. 

No fundo, tal como discuti no meu artigo anterior Bitcoin: Tantas Opiniões, Tão Poucos Factos, o que assusta realmente os governos, reguladores e tomadores de decisão da esfera pública, não é o facto da bitcoin gastar muita ou pouca energia; o que leva estas entidades a temerem a adoção massiva de criptomoedas, é que efetivamente a bitcoin separa o dinheiro do Estado, tal como a imprensa levou à separação entre os poderes do Estado e os poderes da Igreja. 

Para terminar, faculto-vos uma lista de atividades mais inúteis do que a bitcoin, onde gastamos demasiada energia, sem que ninguém se queixe: luzes de Natal, estádios de futebol vazios ou armazenamento de fotos de gatos na internet.  


Por Pedro Febrero - Investigador e Professor em:

https://sol.sapo.pt/artigo/734297/a-bitcoin-nao-destroi-o-planeta

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