Políticas pré-pandémicas têm pressionado as companhias aéreas a manterem no ar “voos fantasma”. Sem quaisquer passageiros a bordo estes aviões levantam voo para que possam assegurar os seus horários de descolagem e aterragem nos aeroportos de toda a Europa. O impacto ambiental é enorme, mas as companhias aéreas garantem não ter outra opção. O que está a acontecer na indústria aérea e o que significa para o planeta?
ACovid-19 teve um impacto transversal em múltiplos setores, tendo sido a indústria aérea um dos mais afetados. Desde o começo da pandemia que se verificou uma diminuição abrupta da procura por viagens aéreas, com 2020 a registar uma queda de 60% no tráfego aéreo global em comparação com os níveis de 2019, de acordo com dados da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO). Os “voos fantasma” surgiram à medida que estes números se foram agravando e, desde então, têm sido um fenómeno relativamente comum.
“Voos fantasma” correspondem a aviões que transportam poucos ou mesmo nenhum passageiro mas que, ainda, assim, efetuam as viagens programadas. De acordo com a Travel Daily News, mais de 27 mil aviões descolaram ou aterraram no aeroporto de Frankfurt em dezembro de 2021, cerca de 890 diários. Embora estes números traduzam um aumento significativo relativamente ao mesmo período de 2020, muitos destes voos seguiam vazios e, apesar de o mundo estar agora a regressar, pouco a pouco, à realidade pré-pandémica, os conhecidos “voos fantasma” continuam a “assombrar” os céus europeus.
A indústria aérea tem um contributo muito significativo na emissão de gases de efeito de estufa, pelo que os “voos fantasma” têm sido um tópico de polémica abordado por muitos ativistas ambientais. Uma calculadora de emissões desenvolvida pela ICAO sugere que um voo entre o aeroporto de Heathrow em Londres e o aeroporto de Schiphol em Amesterdão queimaria mais de 2 mil quilos de combustível numa única viagem, com as emissões de dióxido de carbono associadas.
Segundo a The National News, uma companhia aérea nacional da Alemanha com sede em Frankfurt, a Lufthansa, admitiu ter operado cerca de 21 mil voos vazios durante o inverno de 2021/22. Apenas no Reino Unido foram operados quase 15 mil “voos fantasma” desde o começo da pandemia em março de 2020 até setembro de 2021, segundo dados confirmados pelo The Guardian. Quando efetuadas as contas, estes voos são responsáveis pela emissão de uma grande quantidade de gases de efeito de estufa, embora, em teoria, a viagens pudessem ter sido canceladas por não transportarem passageiros. Então, porque não o são?
O objetivo subentendido dos “voos fantasma”
A resposta à questão colocada é simples: os “voos fantasma” são uma forma de manter slots, um ativo muito valioso para as companhias aéreas. Slot é um termo comum na indústria aérea e corresponde ao direito que um avião de uma dada empresa tem para aterrar ou descolar num aeroporto congestionado. Um slot equivale, portanto, à vaga de uma pista que existe num dado intervalo de tempo e que uma companhia aérea pode comprar para que tenha o direito de, nesse espaço de tempo, aterrar, desembarcar passageiros, reabastecer, receber um novo grupo de passageiros e descolar a partir desse ponto.
“A existência de slots reconhece a falta de capacidade de um aeroporto”, explica John Strickland, da JLS Consulting, uma consultora de aviação, à Wired. “Se não houvesse falta de capacidade, as companhias aéreas poderiam pousar e descolar dentro do razoável sempre que quisessem”. Uma vez que existe uma grande disparidade entre a procura e a oferta de slots, o que reforça a escassez de slots dentro do setor aéreo, estes ativos tornam-se extremamente valiosos para as companhias aéreas, sendo uma garantia de que estas podem efetuar viagens para vários destinos.
As companhias aéreas chegam a pagar aos seus concorrentes para assumir slots. Um exemplo destas trocas foi a venda, em 2016, de dois slots altamente valorizados no aeroporto de Heathrow por quase 70 milhões de euros. Os slots, vendidos pela companhia Oman Air à Air France-KML, correspondiam a uma vaga de aterragem no aeroporto de Londres no horário das cinco e meia da manhã. “Trata-se de usar o solo e o espaço aéreo para aproveitar ao máximo o que tens”, explica James Pearson, analista de desenvolvimento de rotas da Simple Flying, uma consultoria de companhias aéreas, também à Wired. “Teoricamente, é uma ideia muito boa.”
Segundo a Associação Internacional de Transportes Aéreos (IATA), mais de 200 aeroportos em todo o mundo operam algum tipo de sistema de slots, sendo que existe uma probabilidade de cerca de 43% de embarcarmos num voo controlado por um slot, como realça a Wired. Os slots refletem a afluência de um dado aeroporto e a afluência traduz a procura, ou seja, quanto mais aviões aterrarem e descolarem de um dado aeroporto, maior será provavelmente a procura por esse mesmo aeroporto e maior será também a sua necessidade de slots.
Os slots são, por isso, um investimento recorrente das companhias aéreas, que procuram perceber qual o aeroporto e o horário que será mais procurado pelos passageiros para poderem depois investir em slots tendo em consideração esses dados. Para maximizar a receita, os horários precisam de ir ao encontro da procura. Os horários da manhã, por exemplo, são muito procurados por viajantes de negócios que desejam ir e voltar no mesmo dia, pelo que os direitos de aterragem e descolagem nesse intervalo de tempo são altamente valorizados.
Os “voos fantasma” cruzam os céus como uma forma de assegurar que as companhias aéreas mantêm os seus slots, ou seja, o seu direito de descolar e aterrar nos aeroportos num dado horário. Isto porque, para poderem manter os seus slots, as companhias aéreas devem assegurar que a pista é utilizada pelos seus aviões naquele intervalo de tempo, garantindo que pelo menos 80% dos slots de voo que lhes estão alocados são utilizados. Caso contrário, outra companhia poderá assumi-los.
Esta medida procura combater a monopolização dos slots mas, com o início da pandemia, e uma vez que a demanda por viagens aéreas desceu consideravelmente, a Comissão Europeia optou por suspender estas regras. Desde então, o tráfego aéreo mundial tem sofrido algumas melhorias: em 2021, o número de passageiros da indústria aérea aumentou, embora ainda apresentasse números 49% abaixo da era anterior à pandemia. Estas melhorias levaram a que o sistema de slots fosse novamente implementado, ainda que com uma exigência de ocupação mais reduzida de 64%.
Posto isto, muitas companhias aéreas têm operado aviões vazios numa tentativa de garantir que esta percentagem mínima é cumprida e que os slots se mantêm no seu nome. “Se perderes a tua vaga (ou o teu slot), perdes um ativo do teu balanço”, explica à Wired o analista de aviação David Gleave.
A concorrência das companhias aéreas de baixo custo
Uma grande pressão tem sido exercida sobre as companhias aéreas acusadas de operar “voos fantasma”, nomeadamente por companhias aéreas de baixo custo que desejam preencher os slots que não estão, neste momento, a ser utilizados ou estão a ser ocupados por aviões sem passageiros.
A Ryanair, umas das companhias de baixo custo que se tem destacado na promoção da venda de slots por parte de companhias incapazes de as ocupar, emitiu um comunicado no qual acusa a Lufthansa, uma das únicas companhias aéreas a falar, até agora, sobre a problemática do “voos fantasma”, de falhar em resolver a questão dos voos vazios. “A Lufthansa reclama dos “voos fantasma”, não por preocupações com o meio ambiente, mas para que possam economizar ainda mais o regime de slots para proteger os proteger, que não estão a usar, eliminando a concorrência e a escolha do consumidor”, escreve a companhia.
A Lufthansa já admitiu, no passado, operar “voos vazios e desnecessários”, como explica o próprio presidente-executivo da companhia, Carsten Spohr, garantindo, no entanto, que essa é a única forma de a empresa se proteger da concorrência de companhias de baixa tarifa. Perante estas alegações, a Ryanair desafiou a Lufthansa a “vender os assentos nesses voos a preços baixos e recompensar os consumidores da UE, muitos dos quais financiaram os 12 mil milhões de euros em Auxílios Estatais que a Lufthansa e as suas subsidiárias na Bélgica, Áustria e Suíça já receberam de contribuintes pressionados nos últimos dois anos da crise da Covid-19”.
Por agora, a Lufthansa não avançou com nenhuma medida semelhante e, ao que tudo indica, os “voos fantasma” continuam. A Ryanair já acusou várias grandes companhias aéreas, incluindo a TAP, de beneficiarem de uma grande quantia de auxílios estatais. Segundo o grupo Lufthansa, os slots são mais importantes nas dinâmicas de grandes companhias aéreas. “Empresas de rede como o Grupo Lufthansa são mais dependentes de slots para voos que ligam passageiros a rotas de longa distância em hubs do grupo do que companhias aéreas de baixo custo que tendem a voar para aeroportos menores, onde geralmente não há escassez de slots”, explicou, segundo a CNN, um porta-voz da empresa.
No caso destas companhias, o custo de viagens sem quaisquer passageiros compensa as perdas que iriam resultar de abdicarem dos seus slots. Trata-se de um jogo de números bem calculado: perdas de curto prazo serão pagas por retornos de longo prazo que virão com o regresso dos números pré-pandémicos. Os slots que hoje estão ocupados por aviões vazios serão amanhã preenchidos por voos mais cheios, ou assim o esperam companhias como a Lufthansa. Pearson estima que a quantia perdida pelas companhias aéreas em “voos fantasma” será mínima quando em comparação com o que estas poderiam ganhar ao manterem os direitos dessas rotas e slots quando o setor voltar ao normal. “Se eles não tiverem isto (os slots) daqui para frente, especialmente quando o mercado começar a recuperar novamente para a temporada de verão, ficarão numa situação ainda pior”, explicou o analista.
Como a Ryanair, outras companhias de baixo custo têm procurado pressionar as autoridades a restabelecer a percentagem pré-pandémica de 80% de ocupação dos slots de forma a forçar grupos como a Lufthansa a abdicar de alguns dos seus slots. Existe, no entanto, e segundo Gleave, um problema em passar os slots a companhias como a Ryanair, Wizz Air ou EasyAir, nomeadamente porque estas oferecem, maioritariamente, voos de curta distância pelo que, se ocuparem todos os slots dos principais aeroportos vai tornar-se difícil encontrar ofertas de voos de longa distância. “Como é que vais até aos Estados Unidos?”, questiona.
Apesar da esperança de que a pandemia esteja a terminar e que eventualmente os números anteriores à Covid-19 sejam restabelecidos, 2022 continuará, segundo a ICAO, a contar com uma demanda 28% a 33% menor do que a registada em 2019, ou seja, menos 1,3 mil milhões de passageiros vão viajar este ano em comparação com 2019. A pressão, em contrapartida, continua a crescer e não apenas por parte destas companhias, mas também por parte de muitos ativistas que têm colocado as preocupações climáticas no centro do debate.
O impacto climático
Uma análise desenvolvida pela Greenpeace indica que, se os “voos fantasma” operados pela Lufthansa” forem uma problemática transversal a toda a indústria aérea, mais de 100 mil voos sem passageiros terão operado durante todo o ano de 2021, emitindo quantidades de dióxido de carbono semelhantes às de 1,4 milhões de carros a gasolina. “Estamos numa crise climática, e o setor de transporte tem as emissões que mais crescem na UE”, referiu o porta-voz do Greenpeace Herwig Schuster. “Os “voos fantasmas” inúteis e poluentes são apenas a ponta do iceberg”, acrescentou ainda.
Numa publicação na rede social Twitter, a ativista Greta Thungerg chamou também a atenção para o problema, contando, inclusive, com o apoio de muitas vozes da indústria aérea.
”Brussels Airlines makes 3,000 unnecessary flights to maintain airport slots”
The EU surely is in a climate emergency mode…https://t.co/eHLFrd06y0
— Greta Thunberg (@GretaThunberg) January 5, 2022
O próprio grupo Lufthansa admitiu estar preocupado com a questão ambiental, embora considere não ter, perante a situação atual, outra opção se não operar “voos fantasma”, razão pela qual já pediu às autoridades europeias que considerem abrir uma exceção à regra da ocupação mínima de slots, aplicando a cláusula de força maior, para que este voos possam ser reduzidos.
A cláusula de força maior “prevê que um contrato pode ser rescindido por motivo de frustração quando um evento ou circunstância surge após a formação de um contrato que impossibilite a sua execução física ou comercialmente impossível ou transforme a obrigação inicialmente aceite numa obrigação radicalmente diferente da acordada em princípio”, como explica a firma de advocacia também experiente na indústria aérea Winston & Strawn.
“A Comissão da UE deve defender regulamentações uniformes para que voos desnecessários sejam evitados e as companhias aéreas possam planear melhor”, disse, de acordo com a CNN, um porta-voz do grupo Lufthansa.
Ainda assim, e como reforça o mesmo órgão de comunicação, a aplicação de exceções é um processo demorado, nomeadamente tendo em conta que cada exceção depende de duas aprovações: a do ponto de partida ou descolagem e a do ponto de chegada ou aterragem. Estas aprovações são geralmente concedidas pouco antes do voo, pelo que não haveria tempo suficiente para os passageiros marcarem o seu voo.
A solução à problemática dos “voos fantasma” tem sido um tópico divisório dentro da indústria. Enquanto que alguns analistas como Pearson acreditam que as companhias aéreas que operam este tipo de voos estão “encurraladas” e “não tem outra opção” se não continuarem a viajar sem passageiros para assegurar os seus slots, outros consideram que “não há absolutamente nenhuma razão” para que tal aconteça, como explica em comunicado o diretor geral do Conselho de Aeroportos Internacional europeu, Olivier Jankovec.
“A pandemia atingiu todos com força. Equilibrar a viabilidade comercial com a necessidade de manter a conectividade essencial e proteger contra consequências anticompetitivas é uma tarefa delicada. Acreditamos que a Comissão Europeia tem razão. Falar de voos fantasmas e dos seus impactos ambientais parece sugerir um cenário apocalíptico que não tem lugar na realidade”, reforça Jankovec.
Para o diretor geral, as regras de uso de slots devem ter dois objetivos nas circunstâncias atuais: “proteger as companhias aéreas das piores imprevisibilidades que estão fora das nossas mãos e, crucialmente, também garantir que a capacidade do aeroporto continue a ser utilizada de forma a estimular a competição.”
Qual será exatamente a escala da problemática dos “voos fantasma” é uma outra questão que ainda fica por resolver. Alguns especialistas defendem que a proporção do problema terá, provavelmente, sido exagerada e que estes voos serão operados apenas pelas companhias que admitiram fazê-lo, enquanto outros asseguram que existem dezenas de milhares de “voos fantasma” que continuam a circular, com a grande maioria das operadoras a ocultarem o problema. O The Guardian já procurou pedir às companhias que divulgassem estes dados, mas as suas solicitações foram recusadas.
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