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Como os mega-navios entopem o trânsito nos oceanos e atrasam a retoma


A EXAME entrevista Marc Levinson, autor de "The Box", sobre a crise logística internacional que entope portos e deixa prateleiras vazias

O arranque do ano devia ter sido um sinal. O bloqueio do Canal de Suez pelo mega-cargueiro Ever Given deu o tiro de partida para aquele que seria um ano infernal (e muito lucrativo) para o comércio marítimo. Explosão de preços, atrasos nas entregas, cadeias de distribuição paralisadas, portos congestionados e prateleiras de supermercados vazias. A espinha dorsal invisível da globalização tornou-se um sério obstáculo à recuperação da pandemia.

Pouco tempo depois do engarrafamento provocado pelo Ever Given, já havia dezenas de barcos à espera para descarregar as suas mercadorias nos portos de Los Angeles e Long Beach. Nos últimos meses, o engarrafamento foi piorando, chegando a ser mais de 100 cargueiros. Eram os primeiros sinais de crise, que explorámos aqui.

A explicação está numa tempestade perfeita no transporte marítimo, com oferta e procura totalmente desencontradas. Por um lado, a pandemia forçou a interrupção da produção na indústria e portos que, em vários casos, ainda não regressaram a 100%. Por outro, após uma interrupção do consumo no início da pandemia, as famílias dos países mais ricos usaram as poupanças acumuladas para irem às compras. Impedidas de gastar em férias, jantares fora ou concertos, a compra de bens foi o alvo preferido.

Custo dos fretes marítimos, Freightos Baltic Index

Muitas dessas mercadorias vêm da China, a fábrica do mundo, ainda a recuperar da crise. E 90% chegam pelo mar. A procura aumentou tanto que os cargueiros abandonavam portos europeus e americanos sem sequer serem carregados, para poderem voltar o mais rápido possível à China onde tinham encomendas à espera.

Alugar um contentor tornou-se um desafio e cada m2 de num cargueiro passou a ser altamente disputado. O preço de transportar um contentor de Xangai para Los Angeles aumentou de 2.500 para 25 mil dólares e as entregas têm atrasos de semanas. É um “containergeddon”, como lhe chama um especialista à Reuters.

“Se uma empresa portuguesa quiser encomendar algo da China, a empresa chinesa vai dizer-lhe que o aço, o petróleo ou o gás estão mais caros. Depois, como não há stocks, a fábrica diz que vai demorar um mês em vez de duas semanas a produzir. Ainda afetados pela Covid-19, o transporte para o porto leva mais dias e chega a um porto congestionado. Só até aqui já perdeu semanas”, explica Stavros Karamperidis, professor na Universidade de Plymouth, à EXAME. À chegada a um mega-porto, enfrentará outra fila de espera e terá provavelmente de lidar com falta de camionistas para a fase final da viagem. É muito mais tempo e muito mais caro. Joe Biden já implementou medidas de emergência para tentar resolver o problema.

VISÃO escreveu sobre o tema há duas semanas, integrado no problema geral de escassez e subida de preços que atravessa um pouco todo o mundo. Nele, é citado Marc Levinson, historiador e autor do livro “The Box”, sobre a criação e evolução do contentor. Segue em baixo a entrevista completa.

Cargueiros à espera para descarregar nos portos de Los Angeles e Long Beach no final de setembro

“O comércio marítimo está demasiado concentrado e os governos terão de tomar medidas”

Imagino que seja frustrante que as pessoas apenas percebam a relevância do transporte marítimo e das cadeias de abastecimento neste momentos de crise. 

No ano passado, publiquei um livro sobre o que passa nesta crise. Chama-se “Outside the Box” e discute como o transporte marítimo se tornou menos confiável e como as cadeias de abastecimento se tornaram problemáticas. Argumento que muitos negócios transferiram a sua produção para a Ásia e construíram cadeias complexas com base em premissas de custos de produção e transporte que não ajustavam para o risco. Quando as empresas fazem esses ajustamento, as suas decisões sobre onde produzir fazem menos sentido. 

Estamos a viver apenas um desencontro momentâneo entre oferta e procura ou há mais fatores por trás desta crise logística? Estou a pensar em problemas estruturais da indústria de transporte. 

A principal causa da crise é macroeconómica. os governos e bancos centrais de todo o mundo estimularam as suas economias para evitar uma depressão por causa da pandemia. Ao mesmo tempo, as famílias estavam muito limitadas no seu consumo. Não podiam ir de férias, os restaurantes estavam fechados, os concertos foram cancelados… Portanto, as pessoas gastaram o dinheiro em bens, enquanto os serviços caíam. É isso que cria a crise de cadeias de abastecimento. Os dados dos EUA mostram que a quantidade de bens consumidos aumentou três vezes. À medida que os padrões de consumo regressarem ao normal, a crise desaparecerá. 

As transformações que a indústria atravessou nos últimos anos também ajudam a explicar esta crise ou a dificuldade em ultrapassá-la? Por exemplo, a utilização de cargueiros cada vez maiores.

Algumas das mudanças na estrutura das empresas de transporte pioraram a crise. Uma delas foi uma concentração considerável das empresas de transporte marítimo em três ou quatro grandes grupos, chamados alianças, que controlam 90% do mercado. Essas colaborações são aprovadas pelas autoridades de concorrência de cada país. Significa que a indústria é controlada por um pequeno número de grupos, que conseguem controlar a capacidade de transporte disponível, motivo pelo qual o número de navios caiu. Historicamente, a indústria teve sempre capacidade em excesso, o que se traduzia em preços muito baixos. Para o contrariar, uma das prioridades das empresas tem sido controlar a capacidade disponível, o que explica a transição para mega-navios. Em 2006, quando escrevi “The Box”, a capacidade do maior navio era nove mil “twenty-foot equivalent unit” [TEUs, unidade utilizada para medir a capacidade de carga destes navios, tendo por base as dimensões dos contentores standard]. Hoje, os maiores navios têm 24 mil. Os navios tornaram-se muito maiores muito rapidamente. A sua construção é cara e é difícil enchê-los totalmente. Muitas empresas abandonaram o negócio, porque não conseguiam competir com estes mega-navios. 

Historicamente, a indústria teve sempre capacidade em excesso, o que se traduzia em preços muito baixos. Para o contrariar, uma das prioridades das empresas tem sido controlar a capacidade disponível

Estamos a falar de uma indústria que tinha margens muito apertadas.

Estamos a falar de uma indústria que, durante muitos anos, perdeu dinheiro, depois de ter introduzido estes grandes navios. As maiores empresas conseguiram suportar isso, as mais pequenas não. A ideia de barcos maiores era baixar o custo de transporte de cada unidade e isso funcionaria se eles estivessem cheios. O problema é que, até 2020, eles nunca estavam cheios. Navegavam muito abaixo da capacidade. 

Isso começa com a crise de 2008?

Sim. Estes grandes navios tornaram as cadeias de produção menos flexíveis. Eles só podem ser usados em certas rotas que tenham tanta carga para transportar, exigem portos muito profundos e grandes guindastes para os carregar e descarregar. Quando há uma crise deste género, não é possível trocar de navios. Os cargueiros de 24 mil TEUs estão feitos para viajar entre China, Singapura ou Malásia e o Norte da Europa, com algumas paragens pelo caminho. Não podem ser usados para os EUA, porque os portos não conseguem lidar bem com navios desta dimensão. Embora seja necessário mais transporte para os EUA, é difícil usar esses navios. 

Têm de mudar noutros países?

Não. Usam barcos mais pequenos. Na Europa, também há alguns portos em que não podem entrar. Esses grandes navios já estavam a complicar as operações nos portos bem antes da pandemia. A maior parte dos portos tinha menos circulação de navios, mas eles eram cada vez maiores, o que significa maior irregularidade nas cargas e descargas, o que torna o porto menos eficiente. Quem está no terreno tem de lidar com muita carga e, depois, carga nenhuma. As empresas de transporte criaram os navios mais eficientes para elas, mas não os mais eficientes para todo o sistema logístico. 

As empresas de transporte criaram os navios mais eficientes para elas, mas não os mais eficientes para todo o sistema logístico

Qual foi o efeito da pandemia para essas empresas? Estão a fazer muito mais dinheiro?

A pandemia foi ótima para o negócio destas empresas. Estão a ter lucros recorde. Conseguem controlar a capacidade disponível. Também significou uma resposta mais lenta à pandemia. 

Podiam ter mais navios em circulação?

Sim. Andaram a diminuir o número de barcos, porque tinham capacidade em excesso e, como cooperam uns com os outros, podem controlar os planos para construir novos cargueiros. Tem havido menos entusiasmo para construir mais navios. 

Mas agora que há lucros recorde, essas empresas estão a investir, seja em mais navios ou navios mais eficientes?

Há estratégias diferentes. Há uns dias, uma das maiores transportadoras sul-coreanas foi à falência e aquela que sobreviveu está a construir alguns dos maiores navios do mundo, porque foi pressionada para o fazer pelo governo. Construir esses navios usa muito aço e mantém muitos trabalhadores empregados. Outras empresas estão a construir barcos mais pequenos. Por exemplo, foi dada muita atenção ao facto de a Maersk ter encomendado navios mais eficientes na utilização de combustível, mas não ligámos tanto ao facto de eles transportarem “apenas” 16 mil TEUs. São mais pequenos do que têm sido comprados nos últimos anos. Escolheram ter mais flexibilidade em vez de economias de escala. Talvez achem que o comércio será cada vez mais regional em vez de envolver tanto a longa distância. Parece haver divergência de opiniões sobre o futuro do comércio. 

A pandemia foi ótima para o negócio destas empresas. Estão a ter lucros recorde

Entre esses investimentos e um ajuste da oferta e da procura, podemos esperar que os problemas das cadeias de abastecimento desapareçam ou eles são mais estruturais? 

A crise já está a aliviar. Vê-se isso nos preços do transporte da Ásia para os EUA, que começaram a cair um pouco. Dados dos EUA também mostram que consumo de bens já abrandou no terceiro trimestre, o que faz sentido porque as pessoas podem ir de férias e jantar fora. Coisas que não faziam há seis meses. Isso vai ajudar a diminuir o trânsito nos portos. 

Vai a tempo para um Natal normal?

É demasiado tarde para isso. As mercadorias de Natal chegaram em setembro e outubro. O alívio da crise chegará devido a outro problema: as perspetivas de comércio internacional de bens são muito modestas. Desde os anos 80 até à crise financeira, o comércio de bens crescia duas vezes mais rápido do que a economia mundial. Desde 2008 até à Covid-19, o comércio cresceu mais devagar do que o PIB mundial. Há muitos motivos para acharmos que continuará a ser assim depois da pandemia: a produção que era para ser deslocalizada para a Ásia já o foi; o crescimento da população vai diminuir de ritmo; países como Portugal estão a envelhecer e pessoas mais velhas compram menos bens e gastam mais em serviços. Tudo isso aponta para um crescimento mais lento no longo-prazo. Os operadores de terminais têm noção disso e por isso têm sido cautelosos nos investimentos que fazem para aumentar a capacidade. Há muito passa-culpas. Cada um dos elementos da indústria culpa os outros. Ouvem-se muitos pedidos de empresas de transporte marítimo, camiões, governos, etc. para que os terminais expandam a sua operação e se tornem mais eficientes. Eles não têm grande pressa em fazê-lo porque sabem que o crescimento será lento e não querem ter capacidade em excesso quando a crise da Covid acabar. 

As perspetivas de que a globalização continuará a definhar está a travar investimentos?

Existe uma desaceleração destas grandes cadeias de produção e abastecimento e isso voltará a ficar evidente quando a pandemia desaparecer. Seria um erro para os participantes da indústria assumirem que o comércio de mercadorias crescerá como no ano passado. Não vai acontecer. 

Desde 2008 até à Covid-19, o comércio cresceu mais devagar do que o PIB mundial. Há muitos motivos para acharmos que continuará a ser assim depois da pandemia

No início da pandemia discutiu-se muito uma reorganização dessas cadeias, com um regresso da produção deslocalizada. Esse debate morreu?

É uma discussão ativa. Há muitas preocupações, não tanto com trazer a produção de volta, mas com a sua diversificação. Têm mais noção dos riscos de depender de uma só fonte. As empresas gostariam de ter vários locais de produção, que lhes deem alternativas em caso de greve, terramotos, acidentes com navios…Muitas empresas têm dependido apenas de uma fonte como forma de minimizar os custos, mas a pandemia tornou óbvio que isso é um risco. Veremos o comércio tornar-se mais regional nalgumas indústrias, noutras vemo-lo a tornar-se mais redundante. 

No seu livro mais citado explicou como o contentor foi um conceito revolucionário. No futuro, ele será menos relevante?

O comércio de bens será uma fatia mais pequena da economia mundial; o valor do comércio estará cada vez mais nos serviços. Menos na produção física e mais no design, software, marketing… O que é transportado nos contentores não será necessariamente a fonte do valor. A globalização mudou: de transportar coisas passou a espalhar ideias. Muito desse comércio não é bem captado pelas estatísticas – portanto não sabemos bem o que se está a passar -, mas é para aí que vai a globalização.  

Dentro de um ano ainda vamos estar a falar destes problemas de transporte marítimo?

Os governos, principalmente nos EUA, UE e China, enfrentam decisões importantes sobre as alianças de empresas de transporte marítimo. Terão de analisar se elas limitaram demasiado o transporte durante a crise pandémica e se têm de ser restringidas, reestruturadas ou proibidas. Essa discussão ainda não começou. 

Deveriam ser limitadas?

Acho que o mercado está demasiado concentrado e que os governos vão olhar para isso e tomar medidas para assegurar que há concorrência suficiente.

 

https://visao.sapo.pt/exame/analise/analise-inconsistenciaproblematica/2021-11-11-como-os-mega-navios-entopem-o-transito-nos-oceanos-e-atrasam-a-retoma/


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