O aparato da tecnologia avançada organiza as mais indignas regressões sociais. Radical é uma bagageira ser o quarto de um trabalhador
De visita a Lisboa, John chamou um Uber mal chegou ao aeroporto. O carro veio buscá-lo, conta-nos a última edição do Expresso, mas o motorista resistiu a pôr as malas do turista na bagageira. Insistência de um lado e renitência do outro, houve uma altercação, até que a PSP interveio e exigiu que o motorista abrisse a bagageira do carro. Dentro dela, estava um homem - um outro motorista, que faz daquela bagageira o seu quarto, recanto possível para repousar o corpo. Segundo o jornal, não é caso único. A situação é comum entre os migrantes do Indostão a trabalhar para a Uber.
Eis a condição extrema dos trabalhadores da gig economy num país europeu do século XXI. Lisboa, paraíso dos nómadas digitais, capital da Web Summit, viveiro de “unicórnios”, sede do centro tecnológico europeu da Uber, “modelo de ouro” das plataformas: cidade sem teto para quem trabalha. Por mais algorítmica que seja a atividade das aplicações digitais, por mais desmaterializados na “cloud” que sejam os seus mecanismos de controlo, as multinacionais de TVDE não sobrevivem sem o trabalho vivo de mais de 60 mil motoristas no nosso país. Os lucros extraídos a cada viagem formam-se à custa do esmagamento do que é pago aos “parceiros” que executam o trabalho que as plataformas vendem aos consumidores: transportar passageiros.
Somada à crise da habitação - transformada também num ativo financeiro disputado em mercados internacionais de investimento e especulação - esta exploração brutal tem um preço pesado: reenviar-nos ao pior do século XIX. Com horários de 10, 12 ou 14 horas, com os custos do carro e do combustível a seu cargo, com a percentagem sugada pelas multinacionais e pelos intermediários a cada corrida, a remuneração dos migrantes que conduzem os carros não chega sequer para sustentar as mais elementares condições de existência. Como ter uma cama.
O outro lado desta “nova economia”, parte intrínseca do seu “modelo de negócio”, é este esclavagismo digital. A ausência de habitação e os migrantes empilhados em quartos ou a dormir por turnos em bagageiras fechadas, num carro que não pode parar de rodar, são o reverso da monocultura do turismo e da desregulação laboral da economia uberizada. São a sua forma de vida.
Impor contratos de trabalho, tabelar tarifas de viagens, estabelecer contingentes de carros disponíveis, fixar tetos máximos para as rendas, impedir a venda de casas a quem não pretende viver no país nem habitá-las - tudo medidas radicais, indignam-se alguns… Mas reflitamos bem sobre a barbárie perante os nossos olhos. Não há contradição mais radical do que o aparato da tecnologia avançada ser o instrumento que organiza as mais indignas regressões sociais. Radical é uma bagageira ser o quarto de um trabalhador.
Dormir numa bagageira - Expresso
Comentário do Wilson:
Os parceiros da UBER e BOLT tem as suas margens espremidas porque ao contrário dos Taxis que não pagam quase nenhum imposto, os parceiros/donos do carro UBER pagam todos os impostos e mais algum, assim a maior parte do dinheiro que pagamos por uma viagem de UBER vai para o Estado sob a forma de impostos enquanto que os Táxis gozam de privilégios que acabam por fomentar Máfias devido à protecção que a limitação de licenças camarárias concede.
Nos transportes públicos existem filhos e enteados e os TVDEs (UBER e BOLT) são os desgraçados enteados extorquidos pelo Estado que se vergou à Vontade dos Taxistas que não queriam concorrência.
Assim, a única forma de conseguir sobreviver como TVDE é o motorista trabalhar 12 horas por dia e o carro trabalhar 24 horas por dia, 7 dias por semana dividido por apenas 2 motoristas.
os parceiros e motoristas TVDE tem que ter formação específica e seguros específicos como os Táxis mas não recebem nenhum dos privilégios que os Táxis recebem.
Não foi isso que que foi idealizado por estas plataformas. o objectivo original era que qualquer pessoa pudesse usar o seu carro nos tempos livres para ganhar mais algum dinheiro complementar ao seu emprego ou enquanto procura emprego, mas os impostos e investimentos que o Estado obriga estes operadores a fazer (formação, seguro, carro novo (não pode ter mais de 7 anos enquanto que nos Táxis não há limite de idade) etc). faz com que só se possa olhar para esta actividade como actividade profissional, a tempo inteiro, para tentar compensar o investimento, nem que para isso se tenha que dormir na bagageira do carro.
A culpa não é das plataformas, a culpa é do Estado que não trata os TVDE como transportes públicos carregando-os de impostos, taxas e taxinhas que os outros transportes como os Táxis, estão isentos (desde os impostos sobre o combustível até os impostos sobre o automóvel os TVDE tem que pagar como qualquer particular com a agravante de terem que pagar a referida formação, seguro especial e obrigação de terem que ter sempre carros novos).
Preocupante!
ResponderEliminarÉ verdade, mas não ouço nenhum político a defender os TVDEs no sentido de aproximar o seu sistema fiscal aos dos Táxis, igualmente preocupante são os Táxis não terem querido aderir a nenhuma destas plataformas que lhes permitiria aumentar a segurança e praticar preços transparentes.
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