A sonda Voyager 2 é a segunda nave a aventurar-se para além da fronteira que nos separa do resto da galáxia.
Em novembro de 2018, na escuridão do espaço, a milhares de milhões de quilómetros da Terra, a sonda Voyager 2 da NASA atingiu um marco histórico na exploração espacial, tornando-se na segunda nave a entrar no espaço interestelar. Agora, altura em que celebramos o aniversário desta aventura celestial, os cientistas revelaram as observações da Voyager 2 quando cruzou esse limiar – e está a oferecer uma nova visão sobre alguns dos enormes mistérios do nosso sistema solar.
As descobertas, que se estendem ao longo de 5 estudos publicados na Nature Astronomy, marcam a primeira vez que uma sonda recolheu amostras diretas das neblinas carregadas de eletricidade, ou plasmas, que preenchem o espaço interestelar e os arredores mais distantes do sistema solar. É mais um feito inédito para a sonda, lançada em 1977, que também fez os primeiros – e únicos – voos em torno dos gigantes de gelo Urano e Neptuno.
“Tem sido uma jornada maravilhosa”, disse em conferencia de imprensa Ed Stone, físico no Instituto de Tecnologia da Califórnia.
"É emocionante que a humanidade tenha atingido o espaço interestelar", acrescenta a física Jamie Rankin, investigadora de pós-doutoramento na Universidade de Princeton, que não participou nos novos estudos. "Somos viajantes interestelares desde que a Voyager 1 cruzou os limites do nosso sistema, mas com a Voyager 2 é ainda mais entusiasmante, porque agora podemos comparar dois locais bastante diferentes... no espaço interestelar.”
Dentro da bolha
Para compreender as últimas descobertas da Voyager 2, é importante realçar que o sol não é uma bola de luz que queima de forma silenciosa. A nossa estrela é uma fornalha nuclear furiosa que atravessa a galáxia a cerca de 720.000 km por hora, enquanto orbita o centro galáctico.
O sol também é fustigado por campos magnéticos entrelaçados, expelindo constantemente da sua superfície uma brisa de partículas carregadas eletricamente, ou vento solar. Estas rajadas fluem em todas as direções, carregando o campo magnético do sol. Eventualmente, o vento solar colide com o ambiente interestelar – detritos de antigas explosões estelares que habitam os espaços entre as estrelas.
Tal como acontece com a água e o azeite, o vento solar e o meio interestelar não se misturam, fazendo com que o vento solar forme uma bolha, chamada heliosfera, no ambiente interestelar. Com base nos dados da Voyager, esta bolha estende-se até cerca de 18 mil milhões de quilómetros a partir sol, envolvendo os 8 planetas e grande parte dos objetos externos que orbitam a nossa estrela. E isto é uma coisa boa: a proteção oferecida pela heliosfera engloba tudo no seu interior, incluindo o nosso ADN frágil, escudando-nos de grande parte das radiações de maior energia da nossa galáxia.
O limite externo da heliosfera, chamado heliopausa, marca o início do espaço interestelar. Se conseguirmos compreender este limiar, poderemos aprofundar o nosso conhecimento sobre a viagem feita pelo sol na galáxia, algo que, por sua vez, nos pode dizer o que está a acontecer com outras estrelas espalhadas pelo cosmos.
"Estamos a tentar compreender os limites desta fronteira, onde os ventos colidem e se misturam", disse Stone durante a conferência. "Como é que se misturam, qual é o derramamento para dentro e para fora da bolha e vice-versa?"
A heliopausa foi observada pela primeira vez no dia 25 de agosto de 2012, quando a Voyager 1 entrou pela primeira vez no espaço interestelar. Os dados fornecidos surpreenderam os cientistas. Por exemplo, os investigadores sabem agora que o campo magnético interestelar é cerca de duas a três vezes mais forte do que o esperado, o que significa que as partículas interestelares exercem até 10 vezes mais pressão sobre a heliosfera do que se pensava anteriormente.
"É a nossa primeira plataforma onde podemos testar realmente o ambiente interestelar, por isso é literalmente uma coisa pioneira", diz Patrick Koehn, heliofísico e cientista de programa na NASA.
Entrelaçados no espaço
Mas, apesar de todas as expetativas geradas pela Voyager 1, os seus dados estavam incompletos. Em 1980, o instrumento que media a temperatura dos plasmas parou de funcionar. O instrumento de plasma da Voyager 2 ainda está a funcionar corretamente; portanto, quando atravessou a heliopausa no dia 5 de novembro de 2018, os cientistas conseguiram ter uma visão mais detalhada do limiar.
Pela primeira vez, os investigadores conseguiram observar que, à medida que um objeto entra na heliopausa, até aos 225 milhões de quilómetros, o plasma que rodeia o objeto aquece, diminui e fica mais denso. E do outro lado da fronteira, o ambiente interestelar tem temperaturas a rondar os 12.000 graus Celsius, muito mais quente do que o esperado. Porém, este plasma é tão fino e difuso que a temperatura média em torno das sondas Voyager permanece extremamente fria.
A Voyager 2 também confirmou que a heliopausa é uma fronteira com pontos fracos – com fugas que acontecem em ambos os sentidos. Quando a Voyager 1 passou pela heliopausa, atravessou ramificações de partículas interestelares que tinham penetrado na heliopausa, como se fossem raízes de árvores a entrar numa rocha. Mas a Voyager 2 observou um gotejar de partículas de baixa energia que se estendiam a mais de 160 milhões de quilómetros para além da heliopausa.
Outro dos mistérios surgiu quando a Voyager 1 ficou a cerca de 1290 milhões de km da heliopausa, numa zona parecida com uma espécie de limbo, onde o vento solar de saída abrandou completamente e criou uma camada estagnada. Antes de atravessar a heliopausa, a Voyager 2 observou o vento solar a formar um tipo completamente diferente de camada que, estranhamente, tinha quase a mesma largura que a camada estagnada observada pela Voyager 1.
“Isto é muito, muito estranho”, diz Koehn. “E só revela que precisamos de mais dados.”
Sequela interestelar
A solução para estes enigmas exige uma visão mais aprofundada da heliosfera como um todo. A Voyager 1 saiu da heliosfera perto da zona frontal, onde colide com o ambiente interestelar, e a Voyager 2 saiu pelo flanco esquerdo. Como não temos dados sobre o rasto deixado pela heliosfera, o seu formato permanece um mistério. A pressão do ambiente interestelar pode fazer com que a heliosfera tenha um formato esférico, mas também é possível que tenha uma cauda como um cometa – ou a forma de um croissant.
E apesar de atualmente existirem outras sondas exterior, não conseguem enviar dados sobre a heliopausa. A sonda New Horizons da NASA está a atravessar o sistema solar a cerca de 50.000 km por hora e, quando ficar sem energia na década de 2030, ficará em silêncio a milhares de milhões de quilómetros de distância do limite externo da heliosfera. É por esta razão que os cientistas da Voyager e outros investigadores falam na necessidade de uma sonda interestelar de acompanhamento. O objetivo: uma missão de 50 anos, de várias gerações, em direção às regiões inexploradas para além do vento solar, para explorar o sistema solar externo.
"Temos uma bolha inteira e só a atravessámos em dois pontos", disse o coautor do estudo, Stamatios Krimigis, chefe do departamento espacial do Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins. "Dois exemplos não chegam."
Uma nova geração de cientistas está ansiosa para continuar os trabalhos – incluindo Jamie Rankin, que fez o seu doutoramento no Instituto de Tecnologia da Califórnia com os dados interestelares da Voyager 1, com Ed Stone como orientador.
“Foi incrível trabalhar com estes dados de ponta fornecidos pelas sondas espaciais que foram lançadas antes de eu nascer, e ainda estão a fazer ciência incrível”, diz Jamie. "Estou muito agradecida por todas as pessoas que trabalharam no programa Voyager."
Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site nationalgeographic.com
https://www.natgeo.pt/ciencia/2019/11/espaco-interestelar-mais-estranho-do-que-se-pensava
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