Primeiro-ministro tirou a palavra à ministra da Saúde quando esta falava de confinamento e disse que o tipo de linguagem e a falta de clareza dos dados que lhe têm chegado impedem o Governo de montar uma estratégia eficaz para travar os contágios
De pequena irritação em pequena irritação até à explosão final. Pode sintetizar-se desta forma a participação do primeiro-ministro na reunião desta quarta-feira, 24, na sede do Infarmed, onde políticos, parceiros sociais e especialistas em saúde pública voltaram a fazer um ponto de situação sobre a Covid-19 em Portugal. Segundo descreveram à VISÃO várias fontes presentes, António Costa demonstrou um crescendo de impaciência e explodiu já no final do encontro, quando a ministra da Saúde intervinha.
Marta Temido estava a sumariar um conjunto de ideias que tinham sido discutidas na reunião que teve lugar em Lisboa e, pelo meio, referiu-se ao período em que os portugueses estiveram votados a isolamento para prevenir a transmissão do novo coronavírus. O líder do Executivo não gostou de ouvir a expressão confinamento e foi lesto a interromper a sua ministra: vincou que o País não esteve em confinamento e alegou que a atividade económica nunca paralisou completamente. Usou, aliás, o setor da construção civil para exemplificar que a paragem não foi absoluta.
Na ótica de António Costa, palavras como as que estavam a ser proferidas por Marta Temido, ditas em público, não facilitam a transmissão de uma mensagem de serenidade e prejudicam o trabalho que o Governo tem vindo a fazer. Segundo relatos feitos à VISÃO, o primeiro-ministro terá mesmo afirmado que aquele tipo de linguagem é um obstáculo à tomada de decisões, em especial face a uma situação difícil como aquela que se vive em Lisboa e Vale do Tejo.
As fontes ouvidas pela VISÃO asseguram que o líder socialista, “visivelmente aborrecido”, pôs-se de pé e quis “deixar claro” que, se algo falhar, a culpa não será sua, uma vez que “a falta de clareza” dos dados que lhe têm chegado e o boom de casos em Lisboa e Vale do Tejo estão a impedi-lo de fazer o juízo adequado sobre as medidas a tomar.
Ainda que não tenha feito um ataque declarado à Direção-Geral da Saúde (DGS) ou a Graça Freitas em específico, o remoque às autoridades sanitárias foi evidente para quem se sentou naquela sala. O primeiro-ministro, salientam, ficou desconfortável com o facto de pela primeira vez em nove reuniões ter sido contrariado pelos epidemiologistas presentes. “Foi um momento de frustração porque a retórica de que está tudo bem acabou”, atira um responsável político.
Marta Temido ouviu em silêncio a reação áspera do primeiro-ministro, que terminou dirigindo-se a Marcelo Rebelo de Sousa: “Senhor Presidente, voltamos a reunir-nos daqui a 15 dias…” E abandonou o auditório. O Chefe do Estado, incrédulo, encerrou o encontro (que já ia bastante demorado) e apressou-se a sair para as habituais declarações à comunicação social.
Antes disso, António Costa já tinha dado sinais de desconforto quando um representante do setor do turismo observara que Portugal tem neste momento poucos turistas e exigira ao Governo que trabalhasse para transmitir outra imagem além-fronteiras, nomeadamente de que o País não é inseguro do ponto de vista da saúde. O líder do Executivo contrapôs com veemência. Defendeu que a hotelaria e a restauração é que têm de se adaptar a estes tempos de especiais cuidados e jogou o trunfo que tanta polémica já deu, ou seja, Lisboa ter sido escolhida pela UEFA para receber a fase final da Liga dos Campeões.
Em todo o caso, quem participou nos trabalhos garante que a fúria do primeiro-ministro teve início com as intervenções de Baltazar Nunes, epidemiologista Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge e docente da Escola Nacional de Saúde Pública, e de Rita Sá Machado, da DGS, por terem desmontado a tese de que o crescimento do número de infetados derivou do reforço da testagem e dos comportamentos de risco dos jovens, que o Governo e o Presidente da República têm veiculado.
Aliás, um dos argumentos dos especialistas foi o de que em Portugal a cada 28 testes realizados um é positivo, o que significa que o contágio é significativo e não resultado de um maior número de testes. De acordo com os peritos, em muitos países, são necessários muitos mais testes para se encontrar um caso positivo.
No início da reunião, Marcelo Rebelo de Sousa questionara os especialistas sobre o famoso Rt (que mede o número médio de contágios por cada infetado com Covid-19) – que, como Marcelo adiantou aos jornalistas, é de 1,08 em Lisboa e 1,19 em todo o território nacional – e o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, lançara uma pergunta sobre a hipótese de de Lisboa e Vale do Tejo estar já mergulhada num segundo surto, possibilidade que os especialistas não descartaram.
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