Avançar para o conteúdo principal

Os professores ganham mais do que deviam?



 Uma das coisas insólitas do debate público em torno da luta dos professores é aparecer frequentemente o argumento de que os professores auferem salários que se situariam acima da média do que ganham pessoas que trabalham em outras profissões com o mesmo grau de qualificações académicas.


Ouvi isso de opinadores ideologicamente conotados com a direita política, que, noutras alturas, quando ouvem opinadores mais à esquerda, como eu, falar do excesso de diferenças salariais entre quem está no topo das administrações das empresas e quem está na base da hierarquia (em várias empresas portuguesas do PSI20 a remuneração de topo chega a ser mais de 150 vezes a remuneração da base) rapidamente acusam ser essa uma análise suportada num "preconceito ideológico", num conceito social de "igualitarismo basista" e numa visão "niveladora por baixo", que atrasa o progresso da sociedade.


Passe a contradição de a direita aplicar a professores esse alegado "preconceito", esse "basismo" e esse "nivelamento" que não aceita aplicar a gestores, a verdade é que essa afirmação tem por base um relatório anual da OCDE intitulado Education at a Glance, que a Direção-Geral de Educação habitualmente resume e coloca no seu site, em português, com os destaques que entende serem mais relevantes.


Aí a imprensa vai buscar informação que já deu títulos como este (cito um do Expresso em 2020, mas a abordagem é generalizada): "Professores em Portugal ganham mais 40% do que a média dos licenciados (ao contrário do que acontece na maioria dos países da OCDE)"


Pelo meio fica esquecida uma leitura do mesmo relatório, na íntegra, como o de 2022, que está disponível em inglês, onde se explicam que os salários iniciais dos professores em Portugal, com valores corrigidos pela Paridade do Poder de Compra, são 3196 dólares anuais mais baixos que a média da União Europeia e 2598 dólares mais baixos que a média da OCDE, enquanto os salários de topo, nomeadamente das direções escolares, custam mais de 21 mil dólares por ano do que as médias da União Europeia e da OCDE.


Essa diferença entre o topo e a base, se for verdadeira, pode explicar por que é que a média final permite afirmar que os professores ganham mais 40% do que os licenciados de outras profissões, mas na verdade não prova que a esmagadora maioria dos professores esteja nessa situação, dada a distorção que a minoria que ganha o alegado salário de topo provoca, quando se compara com o resto da OCDE.


Além disso, parece-me que há um erro de base: quase todos os professores não são licenciados, são obrigados a ter um mestrado, um grau académico superior, e isso deveria mudar a comparação, que deveria ser feita com profissionais com mestrados e não com os licenciados.


Por exemplo, se aceitarmos como bons os dados do Livro Branco: Mais e Melhores Empregos para os Jovens, com dados de 2019, os jovens com mestrado em início de carreira ganham mais 22% do que os jovens licenciados e auferem, em média, 1617,16 euros.


Se formos ao site Pordata ver os salários dos professores em início de carreira, constatamos que a média do vencimento de um jovem professor é de 1030 euros, quase 600 euros abaixo da média nacional dos jovens com mestrado - e aí o argumento de que os professores "ganham mais do que os outros", com estudos idênticos parece cair pela base.


Se compararmos os salários dos professores com as outras carreiras especiais da Função Pública, para ver se por aí temos um termo de comparação fácil, descobrimos que os professores, afinal, ganham em média menos que os diplomatas, os professores de ensino superior, os militares, a GNR, a PSP, os médicos, os enfermeiros, os magistrados, mas mais do que os bombeiros e os guarda-prisionais.


E há uma coisa que o relatório da OCDE diz e que não vejo destacado neste debate sobre os salários dos professores: é que entre 2010 e 2021 o valor médio dos seus salários reais caiu mais de 5%, uma das maiores descidas da OCDE.


A utilização de leituras aparentemente objetivas de números para condicionar o debate político joga com o facto de, dada a complexidade dos dados envolvidos, ser impossível aos cidadãos e aos jornalistas fazerem uma contra-análise dos inúmeros estudos que aparecem, ou mesmo de procurarem dentro desses estudos e desses dados outros ângulos de apreciação que, porventura, contradigam ou deem outra explicação para o resultado obtido.


Não só os estudos, mesmo metodologicamente sérios, podem ser, à partida, orientados para conseguirem o resultado mais aproximado possível das intenções políticas de quem a encomenda (a pergunta para a qual se procura resposta, pode logo condicionar o resultado mediático), como a sua leitura pode ser ainda contaminada pelas convicções apriorísticas de quem os analisa. A batalha política sobre a Educação em Portugal (tal como sobre a Saúde) é uma constante vítima dessa perversão.


Pelo jornalista Pedro Tadeu em:

Os professores ganham mais do que deviam? (dn.pt)


Comentários

Notícias mais vistas:

Diarreia legislativa

© DR  As mais de 150 alterações ao Código do Trabalho, no âmbito da Agenda para o Trabalho Digno, foram aprovadas esta sexta-feira pelo Parlamento, em votação final. O texto global apenas contou com os votos favoráveis da maioria absoluta socialista. PCP, BE e IL votaram contra, PSD, Chega, Livre e PAN abstiveram-se. Esta diarréia legislativa não só "passaram ao lado da concertação Social", como também "terão um profundo impacto negativo na competitividade das empresas nacionais, caso venham a ser implementadas Patrões vão falar com Marcelo para travar Agenda para o Trabalho Digno (dinheirovivo.pt)

As obras "faraónicas" e os contratos públicos

  Apesar da instabilidade dos mercados financeiros internacionais, e das dúvidas sobre a sustentabilidade da economia portuguesa em cenário de quase estagnação na Europa, o Governo mantém na agenda um mega pacote de obras faraónicas.  A obra que vai ficar mais cara ao país é, precisamente, a da construção de uma nova rede de alta velocidade ferroviária cujos contornos não se entendem, a não ser que seja para encher os bolsos a alguns à custa do contribuinte e da competitividade. Veja o vídeo e saiba tudo em: As obras "faraónicas" e os contratos públicos - SIC Notícias

Franceses prometem investir "dezenas de milhões" na indústria naval nacional se a marinha portuguesa comprar fragatas

  Se Portugal optar pelas fragatas francesas de nova geração, a construtora compromete-se a investir dezenas de milhões de euros na modernização do Arsenal do Alfeite e a canalizar uma fatia relevante do contrato diretamente para a economia e indústria nacional, exatamente uma das prioridades já assumidas pelo ministro da Defesa, Nuno Melo Intensifica-se a "luta" entre empresas de defesa para fornecer a próxima geração de fragatas da marinha portuguesa. A empresa francesa Naval Group anunciou esta terça-feira um plano que promete transformar a indústria naval nacional com o investimento de "dezenas de milhões de euros" para criar um  hub  industrial no Alfeite, caso o governo português opter por comprar as fragatas de nova geração do fabricante francês. "O Naval Group apresentou às autoridades portuguesas uma proposta para investir os montantes necessários, estimados em dezenas de milhões de euros, para modernizar o Arsenal do Alfeite e criar um polo industrial...