Avançar para o conteúdo principal

E se a carreira docente fosse decente?


Manuel Cardoso, Humorista


 Há o Professor Marcelo e o Marcelo professor. O primeiro diverte-se a comentar aspectos mundanos da vida política, atiçando chusmas de jornalistas com um gelado da Santini ou uma garrafa de Fortimel. O segundo é um pedagogo que contribui positivamente para recentrar os debates fundamentais para o país. Esta semana, foi Marcelo professor a aparecer para dar uma aula. Em Junho, Marcelo relembrou António Costa como um aluno que “estudava muito pouco”. Agora, voltou a dar uma descasca ao seu cábula favorito.


O Presidente da República devolveu sem promulgação o decreto do Governo sobre a recuperação do tempo de serviço congelado dos professores, como, aliás, tinha ameaçado fazer. O diploma, criticado pelos sindicatos, contemplaria, não a recuperação integral dos anos de congelamento, mas um mecanismo de aceleração de carreira que só abrange parte dos profissionais. Ou seja, António Costa prosseguiu na senda da displicência quanto à escola: não prestou atenção aos professores, estudou os mínimos e tentou passar com o 10. Desta vez, acabou reprovado por Marcelo.


A revelação da má nota apanhou o primeiro-ministro de surpresa. O Expresso revelou que António Costa estava num avião no momento do veto - quem é que nunca teve as férias estragadas por causa de um chumbo. É o típico ambiente de fim de ano lectivo: já o encontro do Conselho de Estado - uma espécie de reunião de pais - tinha sido encerrado à pressa porque Costa estava ansioso para embarcar na viagem de finalistas à Nova Zelândia. António estava perfeitamente convencido de que ia ter um Verão descansado, a celebrar a sobrevivência do socialismo ibérico e a curtir a ressaca da crise política. À última hora, foi-lhe exigido um trabalho de casa com um exercício que nunca conseguiu resolver.


O primeiro-ministro António Costa e o ministro João Costa têm arrastado a questão da carreira docente como quem arrasta um curso universitário: deixam-se andar, não têm qualquer interesse em fazer um brilharete, desconhecem os professores e dizem a toda a gente que não há que ter pressa, é para se ir fazendo. Por outro lado, o executivo tem os Costa quentes. Sempre que a opinião pública conclui que os professores têm razão em reclamar o tempo de serviço congelado, basta convocar o ministro das Finanças para que ele venha dizer que não há dinheiro. Tem resultado. Junto do eleitorado, as contas certas são aparentemente mais populares do que as boas notas a Matemática.


Uma das razões que sustentam o veto do Presidente da República é a de que o diploma cria “uma disparidade de tratamento entre o Continente e as Regiões Autónomas”. É que, nas ilhas, a solução adotada foi a da devolução integral do tempo de serviço. Bem sei que os professores exigem ser colocados em escolas perto de casa, mas isto seria capaz de justificar um movimento pendular a nado. Honestamente, não encontro razão para que os professores continentais não tenham os mesmos direitos dos professores das regiões autónomas. Será mais difícil lidar com crianças que vivem numa ilha? Só estou a ver uma explicação para esta discriminação: quem fez a lei tinha acabado de ler o Deus das Moscas.


Há quem considere que os professores estão a pedir demasiadas notas para dar notas. António Costa, por exemplo, já disse que os professores “são muito injustos”. Sobre os médicos que pedem aumentos, o primeiro-ministro afirmou ter outras prioridades. Realmente, uma pessoa olha para o país e conclui de imediato: "incrível, estes profissionais da saúde e da educação andam a viver demasiado bem!" Faz todo o sentido a ideia de que há um sentimento generalizado de inveja face às condições de trabalho dos médicos e dos professores. Na rua, ouço sempre coisas como "quem me dera trabalhar a centenas de quilómetros de casa e a aturar adolescentes negligenciados a partir das 8h da manhã!" ou "ui, sabes o que é que me caía bem agora? Era estar visivelmente debilitado e, ainda assim, fazer direta numa urgência sobrecarregada!". Quem é que não almeja ter a vida destes excêntricos.


A verdade é que estamos a sonegar direitos adquiridos precisamente à geração de professores que operou uma mudança radical na educação. E a garantir que não haverá uma nova geração de professores com motivação para aprofundá-la. É que, em Portugal, metade da população ativa não tem o ensino obrigatório. Por outro lado, nos bairros sociais de Lisboa, os filhos dos moradores já têm o triplo dos estudos dos pais. Eu não sou de Ciências, mas parece-me que três vezes mais não é pouco. Façam lá as contas, mas dava jeito que a carreira docente fosse decente.


E se a carreira docente fosse decente? - Expresso


Comentários

Notícias mais vistas:

Constância e Caima

  Fomos visitar Luís Vaz de Camões a Constância, ver a foz do Zêzere, e descobrimos que do outro lado do arvoredo estava escondida a Caima, Indústria de Celulose. https://www.youtube.com/watch?v=w4L07iwnI0M&list=PL7htBtEOa_bqy09z5TK-EW_D447F0qH1L&index=16

Foram necessários 250 anos para construir o que Trump está a tentar destruir

Os esforços do presidente Donald Trump para reformular o governo federal o máximo possível e o mais rapidamente possível destruiriam agências que existem há décadas ou mais. Os seus planos mais amplos reformulariam elementos da infraestrutura governamental que existem há séculos. De Benjamin Franklin a John F. Kennedy e de Richard Nixon a Barack Obama, foi necessária toda a história dos Estados Unidos para construir parte do que Trump tem falado em tentar destruir, privatizar ou reformular. E isso sem contar as reformas que ele está a planear para programas de segurança social, como a  Previdência Social  e o Medicare,  que ele afirma , sem provas, estarem  cheios de fraudes , mas que também estão em caminhos objetivamente  insustentáveis . Serviço Postal dos EUA Estes dois selos postais dos Estados Unidos, com as imagens de Benjamin Franklin e George Washington, entraram em vigor a 1 de julho de 1847.  (Museu Postal Nacional Smithsonian) Fundado em 1775 Os...

Porque é que os links são normalmente azuis?

WWW concept with hand pressing a button on blurred abstract background Se navega na Internet todos os dias já reparou certamente numa constante: as hiperligações são quase sempre azuis. Este pequeno detalhe é tão comum que poucos param para pensar na sua origem. Mas porquê azul? Porquê não vermelho, verde ou laranja? A resposta remonta aos anos 80, e envolve investigação científica, design de interfaces e… um professor com uma ideia brilhante. Vamos então explicar-lhe qual a razão pela qual os links são normalmente azuis. Porque é que os links são normalmente azuis? Antes da Web, tudo era texto Nos primórdios da Internet, muito antes do aparecimento dos browsers modernos, tudo se resumia a menus de texto longos e difíceis de navegar. Era necessário percorrer intermináveis listas de ficheiros para chegar à informação pretendida. Até que, em 1985, Ben Shneiderman, professor da Universidade de Maryland, e o seu aluno Dan Ostroff, apresentaram uma ideia revolucionária: menus embutidos, que...