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Serhy Yekelchyk: “A Ucrânia é apenas uma plataforma para a Rússia chegar ao Ocidente. Está a lutar pelos valores europeus, está a lutar sozinha pela Europa”


Serhy Yekelchyk


 É um historiador ucraniano que alerta: para Putin, a Ucrânia é um passo importante, mas apenas o primeiro. Serhy Yekelchyk acredita que a Letónia será o próximo país engolido pela nostalgia imperialista de Vladimir Putin


Quando Serhy Yekelchyk escreveu “Ukraine: Birth of a Modern Nation”, em 2007, o livro tornou-se o primeiro a incluir a história da Revolução Laranja na Ucrânia. A obra foi depois traduzida para cinco línguas. O historiador de origem ucraniana, mas com dupla nacionalidade (ucraniana e canadiana), nunca mais largou o tema da guerra que, diz, decorre há oito anos.


Professor de Estudos Eslávicos e Germânicos e também de História, Serhy Yekelchyk especializou-se no regime de Estaline, na História moderna da Ucrânia e em cinema da Guerra Fria.


Este é um alerta de um historiador ucraniano. Serhy Yekelchyk garante que o Presidente russo quer ir mais longe (até à Letónia), e lamenta a falta de unidade na tomada de decisões por parte do Ocidente. Por outras palavras, a Ucrânia é “um teste [lançado por Vladimir Putin] ao Ocidente”, e também a China vai tirar as devidas conclusões neste exercício de avaliação da capacidade de reação da Europa e dos EUA.


Vê a invasão da Ucrânia como o princípio de uma incursão maior ou como a consumação de uma ameaça que tem estado a pairar no ar nos últimos anos?

O contexto importante que nem sempre é compreendido na Europa é que a guerra é a resposta a algo que aconteceu na própria Rússia, em 2011, quando ocorreram protestos massivos contra os planos de Putin de ficar no poder para sempre. As manifestações aconteceram em grandes cidades russas, particularmente em Moscovo e São Petersburgo. Esse foi o momento em que as autoridades russas perceberam que tinham um problema com a opinião pública. E a motivação mais profunda para esses protestos era a Ucrânia, que atravessou uma revolução profunda em 2005. Fazia todo o sentido que a Rússia quisesse suprimir a democracia na Ucrânia, para manter também asfixiada a democracia na Rússia.  


Quando a Ucrânia viveu outra revolução a favor dos valores europeus, em 2014, a Rússia agiu imediatamente, anexando a Crimeia e assistindo a criação de duas repúblicas separatistas perto da fronteira russa. Ficou bastante claro que o Governo russo não toleraria algo como o tipo de democracia da Ucrânia na Rússia. Putin queria realmente invadir a Ucrânia, e a guerra está em curso há oito anos. Muitas pessoas pensam que a guerra só foi iniciada com a invasão dos últimos dias, mas a guerra nunca terminou verdadeiramente. No entanto, penso que ninguém esperava este tipo de guerra, porque é até estranho os russos reivindicarem que são “os irmãos e as irmãs da Ucrânia”. Além disso, o ataque em tantas cidades não condizem com o argumento de que os ucranianos são o povo mais próximo do russo, e de que, no fundo, são um só.


O argumento apresentado à Rússia é, todavia, diferente. Tenho de consultar os ‘media’ russos, por razões de trabalho, embora seja muito difícil, por serem tão dominados pelo Estado. Os ‘media’ russos não são independentes, assim como no Parlamento não há oposição. Na comunicação social russa, esta guerra é apresentada como uma “guerra contra a NATO e contra o Ocidente, em geral”. Mas a ironia disso – e é uma ironia cruel – é que a Ucrânia nunca foi convidada a aderir à NATO. Nunca foi convidada a juntar-se à União Europeia. São apenas os ucranianos a querer pertencer ao Ocidente, mas o Ocidente nunca deu sinais de que iria a Ucrânia seria aceite.


A NATO é um pretexto.

Precisamente. É isso que é. Este argumento cai muito bem entre o público russo, porque as pessoas que cresceram ainda na União Soviética foram ouvindo propaganda desde os primeiros anos de vida que difundia a mensagem de que a NATO era o mal absoluto. Que considerava que a NATO era a pior coisa do mundo. “Eles vêm aí e vêm matar-vos.” Por isso, a Rússia perpetuou esse mesmo argumento, e grande parte da população acredita mesmo que a NATO já está na Ucrânia. 


Antes da invasão, os ‘media’ russos argumentaram que a NATO iria invadir a Rússia através da Ucrânia. É um pretexto fabricado que alguns ‘media’ tomaram como garantido. Nem todas as pessoas gostam da NATO, isso é certo. Mas isto não é sobre a NATO, é sobre a Rússia atacar um país mais fraco com um exército mais pequeno que não tem muitas armas modernas. Se ele vencer, vai celebrar a vitória como uma vitória sobre o Ocidente ou sobre os norte-americanos ou sobre a NATO, mas será apenas uma vitória sobre os ucranianos.


Além da narrativa do império perdido, a Rússia tem interesses ocultos na Ucrânia?

São vários os recursos da Ucrânia, mas a indústria ucraniana hoje é um resto da indústria soviética, não está propriamente reformada. Os russos sabem disso. A razão para terem mirado Donbas também tem que ver com ser uma região de muitos minérios. Todas as minas do lado russo da fronteira estão fechadas há muito tempo, mas, no lado ucraniano, segundo a propaganda russa, há reservas que são o exemplo do que se pretende capturar. No entanto, não acredito que continuem a dedicar-se aos minérios em Donbas. 


A Ucrânia é um grande exportador de químicos para a agricultura. A Ucrânia tem uma agricultura bastante desenvolvida. A Rússia quer definitivamente isso, mas a principal razão para a invasão é falar à audiência “doméstica”, à audiência nacional. Putin acredita que a sua popularidade vai aumentar muito em resultado de uma guerra curta e bem-sucedida.


E isso é provável?

É possível. Os russos ainda sentem uma certa nostalgia em relação ao império. É muito difícil para nações do interior lidar com a perda do império. Putin mostra, à audiência nacional, que não há uma democracia na Rússia. Não devem ter esperanças, porque a Ucrânia tentou, e a Rússia esmagou-a. Esse é um sinal claro.


Os últimos relatórios acerca dos protestos na Rússia em Moscovo e São Petersburgo também provam isso. É uma situação muito difícil para os russos porque eles não são canais institucionais para a oposição. Não há uma oposição política, não está representada no Parlamento. Não há uma oposição nos ‘media’. Os jornalistas são mortos ou presos. É, por isso, muito difícil encontrar um canal legal para desencadear mudança política.


Para os russos, manifestar-se nas ruas é um risco, mas é a única forma de expressarem o desacordo em relação ao regime, não há outra forma. Agora também limitam a internet e o Facebook.


Acredita que os russos, por terem uma mentalidade e uma forma diferente de olhar para as coisas – também devido a terem estado expostos a propaganda política durante anos e de uma forma muito ostensiva -, não observam no seu Presidente as características que grande parte do Ocidente lhe atribui?

Concordo. Embora haja uma limitação. Não há uma sondagem objetiva feita na Rússia, porque, num Estado ditatorial, as pessoas têm medo de responder com verdade em sondagens. Eles pensam: “É o Estado a fazer estas perguntas, não é independente.” Por isso, não temos uma leitura clara acerca de que percentagem do público russo é favorável a este regime, em vez de preferir uma democracia. Que percentagem dos russos acredita que restaurar o império é a melhor decisão? Arriscaria dizer que há pessoas mais velhas na Rússia, até uma percentagem significativa, que têm medo de se expressar.  


Putin não vai viver para sempre, está quase com 70 anos. Ele sabe, a partir dos exemplos históricos, que é muito difícil os ditadores terem um sucessor que perpetue o seu regime. Muitas vezes, quando o ditador morre, essa ditadura colapsa. 


Ele não é eterno, e é engraçado que, para um homem tão forte, para um ditador com tanto poder, ele seja um homem tão cheio de medo da Covid-19. É essa a razão que o leva a sentar-se na mesa tão longe dos diplomatas ocidentais e até dos seus representantes do Governo. Este homem que quer tanto mostrar à Europa que é forte tem simplesmente muito medo. É uma ironia.


Quanto mais velho fica, mais cirurgias plásticas faz. Na Rússia, toda a gente sabe disso.


Que operações são essas?

Ninguém sabe ao certo. A versão oficial do Governo é que o Presidente estava doente, com uma constipação. Ele faz isso mais ou menos a cada dois anos. Depois, aparece em público e não consegue sorrir, porque já fez muitas cirurgias.


Muitas pessoas fazem-no, se tiverem dinheiro para isso… E Putin é uma pessoa rica.

Sim, e muita gente não percebe, ao mesmo tempo, o quão vaidoso ele é. Ele é uma pessoa que ameaça a Europa com bombas nucleares, e não tolera que ninguém ajude a Ucrânia. Se algum Estado apoiar a Ucrânia, vai experienciar consequências nunca antes vistas na História, o que claramente significa recurso ao armamento nuclear. Por isso, uma pessoa de quem todo o mundo tem medo é um ser humano bem estranho.


O que se enquadra mais no perfil de Putin é a reação emotiva a uma dita afronta internacional ou um passo calculista, ponderado, e em que se tenham pesado todos os fatores?

Penso que ele é muito calculista, que ele realmente dá passos como se estivesse a jogar xadrez. A estratégia mais importante que ele usa é dividir a Europa, dividir o Ocidente, estabelecendo relações com alguns países europeus e com alguns políticos europeus. O primeiro-ministro da Hungria é um aliado de Putin.


Ele também ameaça a Europa com o gás natural. É tempo de os países europeus perceberem que não podem contar com um ditador para as suas necessidades energéticas e de aquecimento. Um ditador é imprevisível. 


Mesmo sendo calculista, acredito que ele está a perder o contacto com a realidade. Isto acontece a todos os ditadores, porque as pessoas têm medo de lhe dizer a verdade. As pessoas só lhe dizem o que ele quer ouvir, por isso a visão de Putin do mundo é diferente, não porque ele fez cálculos errados, mas porque ele não recebe informação objetiva. Putin esperava que a Ucrânia colapsasse rapidamente, mas isso não aconteceu. Os combates estão a ser intensos, e estão a ocorrer baixas de ambos os lados. No entanto, ele continua a ter um dos maiores exércitos do mundo, e a Rússia pode derrotar a Ucrânia. Só que a Ucrânia é apenas uma plataforma para a Rússia chegar ao Ocidente. A Ucrânia está a lutar pelos valores europeus, mas está a lutar sozinha pela Europa. O Reino Unido, pelo contrário, tem agora uma boa reputação entre os ucranianos, porque respondeu rapidamente. Boris Johnson não é muito popular no Reino Unido, mas é muito popular na Ucrânia. A União Europeia teve de fazer consultas internas; demoraram muitos dias. Boris Johnson respondeu imediatamente. Na imprensa ucraniana, saudava-se: “God save the Queen.” O Reino Unido era o “amigo” em quem se podia confiar. 


Esta guerra pode escalar para um conflito mais abrangente? Acredita que a Rússia irá além das fronteiras da Ucrânia?

Acredito, mas não sei dizer quando. Entre os membros europeus da NATO, há um país que é muito vulnerável, o mais pequeno: a Letónia. A Letónia tem uma minoria russa significativa, que se encontra concentrada numa região perto da fronteira com a Rússia. Putin está a calcular os seus passos observando como o Ocidente reage à ocupação da Ucrânia. Por outro lado, os chineses também têm este tipo de pensamento, e querem controlar Taiwan. E, se os restantes ditadores do mundo virem que podem safar-se com algo desta dimensão, atrevem-se.


A ocupação da Ucrânia é um teste ao Ocidente, portanto…

Exatamente. Putin deverá estar a pensar: “O que faço em seguida? Se me safo com uma guerra na Ucrânia, posso tentar ir para a Letónia e ver como corre.” Será que haveria uma resposta imediato ou a UE voltaria a dizer que teria de reunir-se e ponderar internamente? Será que a NATO iria demorar a “considerar” o que deve fazer? Durante o tempo em que estariam a considerar, a Rússia invadiria todo o país. 


Em última análise, a questão é esta: tradicionalmente a posse de armas nucleares era considerada como um fator dissuasor. Ninguém quer usar bombas nucleares, mas aqui está uma pessoa que ameaça usá-las, não tem medo disso. Qual seria a resposta do Ocidente? O Ocidente está a criar um problema, porque a forma como demonstrou a sua fraqueza e divisão não é um bom sinal. Putin vai analisar isso e pode vir a tirar conclusões loucas


https://expresso.pt/guerra-na-ucrania/serhy-yekelchyk-a-ucrania-e-apenas-uma-plataforma-para-a-russia-chegar-ao-ocidente-esta-a-lutar-pelos-valores-europeus-esta-a-lutar-sozinha-pela-europa/

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