No dia 24 de fevereiro, o grupo ativista Anonymous declarou guerra ao governo russo. Desde então têm organizado ataques contra vários websites russos, incluindo o Ministério da Defesa russo e alguns órgãos de comunicação. Quem é afinal o misterioso grupo Anonymous e como estão a ajudar a combater a invasão russa?
Há quem lute sem nunca pegar numa arma ou sair de casa. No mundo digital, podem ser programados ataques a partir do conforto do nosso quarto, e o único requisito são “os nossos smartphones”, escreve em comunidade o grupo ativista Anonymous. Criado em 2003, é conhecido por retaliar algumas organizações como a ISIS e certas entidades governamentais através de ataques cibernéticos, sendo que a mais recente “vítima” é o governo russo.
O nome dado ao grupo criado em 2003 fala por si: Anonymous, cuja tradução é “Anónimos”, é uma comunidade online sem rosto, sem nomes e sem identidade, cuja única função é “fornecer apoio a quem mais precisa, para o benefício de todos – não importa quem são ou onde vivem”, afirma o próprio grupo.
A comunidade online tem vindo a ganhar cada vez mais dimensão desde o seu começo há quase duas décadas. Nunca foi identificado um criador ou qualquer tipo de hierarquia dentro da comunidade até porque não se tratam de uma organização, como faz questão de sublinhar. São antes “a primeira superconsciência com base na Internet”, segundo o site Anonnews, constituída por “pessoas comuns” de todo o mundo que usam a Internet como uma plataforma de liberdade de expressão.
“Nós somos o trabalhador de Tecnologias da Informação, que conserta computadores, e o codificador que encontra maneiras de contornar a vigilância. Nós somos o motorista de entrega que acabou de gastar o resto do seu dinheiro na renda. Somos o pai que leva os filhos à escola, somos as mães que têm dois empregos. Nós somos a juventude que vê desastre após desastre. Nós somos o funcionário de limpeza que limpa os teus pisos. Nós somos o professor a instruir os teus filhos”, escreve o grupo em comunicado.
De facto, e tendo em conta a falta de estruturação do grupo, qualquer um pode reivindicar ser parte dos Anonymous e hackear em nome de uma qualquer causa, sendo que, geralmente, o alvo dos ataques são organizações acusadas de uso indevido de poder.
O grupo de ativistas preocupa-se em “parar ações erradas em todo o mundo” e assume-se como a “consciência coletiva da Internet”. No passado, já organizaram ataques contra várias organizações e, embora nem sempre existam provas da sua autoria, as ameaças do grupo não deixam de ter significativos impactos e os ataques são sentidos. Em 2012, a comunidade descentralizada de hackers foi, inclusive, considerada pela Time uma das cem pessoas mais influentes do mundo.
Hoje, e mais uma vez, o grupo une-se contra o “opressor”: o governo russo e Vladimir Putin, como explica em comunicado. A 24 de fevereiro, dia do primeiro avanço russo sobre a Ucrânia, o grupo Anonymous declarou através de uma conta de Twitter que lhe é associada guerra contra o governo russo.
The Anonymous collective is officially in cyber war against the Russian government. #Anonymous #Ukraine
— Anonymous (@YourAnonOne) February 24, 2022
Publicação no Twitter do utilizador @YourAnonOne, uma das contas ligadas ao movimento Anonymous, na qual é possível ler: “O coletivo dos Anonymous está oficialmente a declarar guerra cibernética contra o governo russo”
Desde então, este grupo tem sido responsável, ou assim o alega, por desativar vários sites do governo russo, órgãos de comunicação e por divulgar dados confidenciais da Agência Federal Russa, dedicada a censurar e controlar a media russa, naquela que a própria comunidade descreve como “a maior ofensiva cibernética da história do mundo”.
“O ataque do governo russo à Ucrânia pôs milhares de vidas inocentes em perigo. Nós apoiamos a Ucrânia na sua luta pela liberdade e na defesa da democracia”, escreveu o grupo num apelo a que as pessoas se unam ao Anonymous e doem à Cruz Vermelha.
Confirmar as alegações
Através de algumas contas de Twitter associadas ao grupo Anonymous, ou “legião”, como se intitulam, o mundo fica a conhecer as ofensas cibernéticas que tem implicado a declarada guerra da comunidade de hackers contra o governo russo.
A própria conta, que já contava com cerca de 7,9 milhões de seguidores, ganhou outros 500 mil desde o começo da invasão russa. As alegações de ataques feitos pelo grupo são várias, mas nem sempre é possível averiguar a sua veracidade. Foi nesse sentido que Jeremiah Fowler, cofundador da empresa de segurança cibernética Security Discovery, trabalhou com investigadores da empresa Website Planet para perceber se essa guerra escondida entre os hackers e o governo russo estava, de facto, a acontecer.
A resposta curta é sim, como explica Fowler num relatório que publicou sobre as suas descobertas. “Anonymous provou ser um grupo muito capaz que já penetrou em alguns alvos, registos e bancos de dados de alto valor na Federação Russa”.
De 100 bancos de dados analisados pela equipa de Fowler, 92 foram comprometidos, segundo o relatório, e, embora se desconheça se foi feito o download dos dados ou o que os hackers poderão fazer com essa informação, é elevada a probabilidade de esses indivíduos “enfrentarem riscos reais de outras ações cibernéticas”.
Os dados incluíam informação de vários sites intergovernamentais como a Comunidade de Estados Independentes (CEI), uma organização criada em 1991 pela Rússia e outras ex-nações soviéticas após a queda da União Soviética e uma fornecedora de Internet russa da qual dependem atualmente 18 cidades, entre outros.
O ataque resultou em múltiplos arquivos apagados, várias pastas renomeadas “putin_stop_this_war” (putin_para_esta_guerra) e endereços de e-mail e credenciais administrativas expostas. Um dos bancos de dados contava com mais de 270 mil nomes e endereços de email e outro continha um “número muito grande” de palavras-chave e outras informações de segurança capazes de desbloquear “dados criptografados”.
“O perigo de expor uma palavra-chave privada ou secreta é que ela pode ser usada para desbloquear informações criptografadas e expor quaisquer dados ou informações confidenciais da mesma forma que uma chave física abre uma porta”, explica Fowler, acrescentando que “não é claro se as palavras-chave já foram usadas ou que dados podem revelar”.
Fowler verificou ainda que as alegações do grupo Anonymous e os ataques que analisou batiam certo temporalmente: “a linha do tempo combina perfeitamente”, disse.
“Falar diretamente com o povo russo”
Apesar destes ataques, foi a interrupção da transmissão ao vivo de uma televisão estatal russa que causou o maior impacto. Pelo Twitter as imagens de uma televisão que, de repente, começou a passar imagens da guerra, soldados ucranianos a falar sobre a sua experiência e até hinos a exaltar a Ucrânia têm sido partilhadas repetidamente por utilizadores de todo o mundo, um ataque que Lisa Forte, sócia da empresa de segurança cibernética Red Goat, disse à BBC ter sido “incrivelmente criativo” e “difícil de realizar”.
De facto, e até então, a maioria dos ataques organizados pelos hackers havia sido na base de DDoS, Distributed Denial of Service (ataques de negação de serviço distribuído), ataques nos quais os serviços “são inundados com milhares ou milhões de solicitações supérfluas que sobrecarregam a máquina e os seus recursos de suporte”, como explica a CheckPoint, uma empresa que atua na área de segurança na Internet em diversos países. Esse tipo de ataques são, para Forte, “bastante básicos”, nomeadamente quando em comparação com o ataque à televisão russa.
JUST IN: #Russian state TV channels have been hacked by #Anonymous to broadcast the truth about what happens in #Ukraine. #OpRussia #OpKremlin #FckPutin #StandWithUkriane pic.twitter.com/vBq8pQnjPc
— Anonymous TV ???????? (@YourAnonTV) February 26, 2022
Publicação no Twitter do utilizador @AnonymousTV, uma das contas ligadas ao movimento Anonymous, que inclui o vídeo filmado do ataque à televisão russa numa emissão em direto e na qual é possível ler: “Televisões estatais russas foram hackeadas pelos Anonymous para mostrar a verdade do que se passa na Ucrânia”
Algumas personalidades como o repórter Joe Tidy, que se tem ocupado em explorar o tópico da segurança cibernética e que já falou, inclusive, com alguns membros dos Anonymous, também publicou as imagens sobre as quais admitiu estar inicialmente “cético”. O repórter garante, no entanto, ter falado com “a fonte original do vídeo” e confirmado a veracidade das imagens.
This video shows probably the most eye-catching thing Anonymous has done so far – a 'broadcast signal intrusion' on Russian TV. Almost all channels were made to play Ukraine war footage. I was sceptical it happened but spoke to the original source of the video and confirmed it. pic.twitter.com/1VFVfVpsCw
— Joe Tidy (@joetidy) March 20, 2022
Em resposta a outra publicação sua no Twitter, o repórter Joe Tidy publicou o vídeo do ataque à televisão estatal russa e escreveu: “Este vídeo mostra provavelmente o ataque de maior destaque feita pelos Anonymous – uma intrusão de broadcast na TV russa. Quase todos os canais mostraram filmagens da Ucrânia. Eu estava cético quando aconteceu, mas depois falei com a fonte de onde partiu o vídeo e confirmei-o.
Em resposta à BBC World News, Tidy explicou que os ataques parecem agora ser mais do que apenas uma forma de “embaraçar” o governo russo e assumem-se como uma tentativa de “falar diretamente com o povo russo que não está a receber informações transparentes da guerra”. “Mostra que se estão a esforçar por contactar as pessoas diretamente na Rússia” numa tentativa de as persuadir a “unirem-se” contra Putin, acrescenta. Segundo o repórter, o ataque terá durado um total de 12 minutos.
A conta @YourAnonNews alegou ainda ter interrompido alguns sites de grandes organizações e agências de media russas, como a empresa de energia Gazprom e a agência de notícias patrocinada pelo Estado RT, sendo que, segundo Fowler, “muitas dessas agências admitiram que foram atacadas”.
Esses sites, e muitos outros, foram fechados em diferentes momentos nas últimas semanas, nomeadamente porque têm também sido alvo de outros grupos, incluindo cerca de 310 mil voluntários digitais que se inscreveram na conta do Telegram “IT Army of Ukraine”.
“Anonymous és tu”
É com esta frase que o grupo introduz o seu apelo ao mundo para se juntar à luta cibernética contra o governo de Putin. Naquela que parece ser uma parceria entre o grupo Anonymous e o Squad 303, um grupo de hackers polacos, foi desenvolvida uma ferramenta que permite a qualquer pessoa participar no combate ao governo russo.
A ferramenta corresponde a uma plataforma que permite a qualquer pessoa enviar mensagens de texto ou mesmo ligar a números de telefone russos aleatórios para que seja partilhada com eles a verdade sobre a guerra. Segundo o grupo polaco, o site já permitiu o envio de mais de 20 milhões de mensagens via SMS e WhatsApp.
“O Squad303 oferece uma ferramenta que permite enviar mensagens de texto dos vossos telefones diretamente para russos selecionados aleatoriamente. Deixa-os saber a verdade. Deixa-os conhecer o poder do mundo livre!”, escrevem os autores da plataforma.
Segundo Tidy, dois dos grupos Anonymous com os quais falou consideraram esta iniciativa em prol da Ucrânia a mais impactante levada a cabo pelo coletivo.
Um dos membros do grupo Squad 303 que falou com o repórter garantiu ainda que não foi roubada ou partilhada qualquer informação privada dado que esta foi apenas uma forma de tentar estabelecer contacto com os “habitantes deste país escravizado”, como são descritos os russos pelo grupo, e vencer a guerra da informação através da partilha da verdade
Os riscos e as falsas alegações
Seja qual for a intenção que dá origem a estes ataques, as ações levadas a cabo por estes grupos são ilegais e vêm acompanhadas de alguns riscos, como explica à BBC Emily Taylor, do Cyber Policy Journal. “Estes ataques trazem riscos. Podem levar a uma escalada, ou alguém pode acidentalmente causar danos reais a uma parte crítica da vida civil”, afirma.
Os ataques podiam, acidentalmente, derrubar a rede de informação de um hospital ou impactar uma qualquer plataforma essencial à normal vida dos civis, nomeadamente tendo em conta que a atividade deste tipo de ativismo cibernético aumentou consideravelmente desde o iníciio da guerra na Ucrânia.
Ainda assim, muitos dos grupos que têm alegado atacar plataformas russas não o fizeram realmente. No caso dos Anonymous, Fowler disse no seu relatório não ter encontrado nenhuma situação em que as alegações fossem exageradas, mas nem sempre esse é o caso.
Segundo a CheckPoint, um grupo pró-ucraniano alegou ter hackeado um reator nuclear russo, algo que se provou ser falso. Outros grupos acusaram os Anonymous de roubar créditos quando, ao que tudo indica, não só não estavam relacionados com o grupo como tinham publicado provas falsas de supostos ataques, nomeadamente informações antigas ou publicamente disponíveis.
Um grupo pró-russo anunciou também ter fechado o site dos Anonymous, uma alegação que a CheckPoint já provou ser falsa e que foi rebatida, inclusive, pelo próprio grupo numa publicação no Twitter.
Look, it's cute pro-Russian hackers claimed to have taken down our website, the thing is, Anonymous has no official website. It's just more propaganda on their part.
— Anonymous (@YourAnonNews) March 9, 2022
Publicação no Twitter do utilizador @YourAnonNews, uma das contas ligadas ao movimento Anonymous, na qual é possível ler: “Olhem, é fofo que os hackers pró-russos anunciem ter deitado abaixo o nosso website, mas o que se passa é que os Anonymous não têm nenhum website oficial. É só mais propaganda da parte deles”
O outro lado
Como há quem lute em nome da Ucrânia, também há quem o faça em nome da Rússia e existem hackers dos dois lados. A BBC falou com um hacker russo, cujo nome preferiu não referir, que diz ter derrubado temporariamente vários sites do governo ucraniano, inundando servidores com ataques de DDoS.
A BBC diz ter, inclusive, testemunhado uma equipa a colocar uma página da web militar ucraniana offline. Outros ataques incluíram o envio de 20 ameaças de bomba por email a várias escolas, a invasão dos feeds do painel ao vivo de uma “equipa de resposta rápida” ucraniana não identificada, entre outros.
“Este é apenas o começo”, diz o hacker russo não identificado, numa chamada criptografada com distorção de voz. “Precisam de entender que estamos a ser cuidadosos e a observar o que fazemos no momento. Podíamos já ter lançado ransomware, mas ainda não o fizemos”. Ransomware é um tipo de ataque mais complexo e com consequências mais significativas do que os mais frequentes DDoS.
O futuro das guerras estará, a partir de agora, cada vez mais ligado ao mundo do online. Segundo o testemunho de Marianne Bailey, sócia de segurança cibernética da consultoria Guidehouse e ex-executiva de segurança cibernética da Agência de Segurança Nacional dos EUA, à CNBC News, este tipo de ataques é mais barato, mais eficaz e mais fácil de negar comparativamente a uma guerra no terreno tradicional, razão pela qual serão “usados com mais frequência em conflitos futuros”.
Hackear assume-se também como uma forma de ativismo, uma forma de “protesto no século 21”, explica. Embora se trate de um crime, os hackers são muitas vezes vistos como uma espécie de “Robin Hood´s cibernéticos”. Os Anonymous, em concreto, têm recebido muitos aplausos dos seus seguidores online.
Numa das suas contas, o grupo publicou recentemente uma ameaça às empresas que ainda mantêm negócios em território russo, dizendo: “Saiam da Rússia! Têm 48 horas para refletirem e suspenderem os negócios na Rússia, caso contrário serão um alvo nosso!”. A publicação feita no Twitter @YourAnonTv, uma das muitas contas ligadas ao grupo, indica que um ataque estará para breve, algo que Tidy confirmou em entrevista.
Press Release: We call on all companies that continue to operate in Russia by paying taxes to the budget of the Kremlin's criminal regime: Pull out of Russia! We give you 48 hours to reflect and withdraw from Russia or else you will be under our target! #Anonymous #OpRussia pic.twitter.com/7HO9UzeBoc
— Anonymous TV ???????? (@YourAnonTV) March 20, 2022
Publicação no Twitter do utilizador @YourAnonNews, uma das contas ligadas ao movimento Anonymous, na qual é possível ler: “Comunicado de Imprensa: Nós chamamos a atenção a todas as companhias que continuam a operar na Rússia, pagando impostos ao regime criminoso do Kremlin: Saiam da Rússia! Damos-vos 48 horas para refletir e suspenderem os negócios na Rússia, caso contrário serão um alvo nosso!”
Visão | Anonymous: o exército cibernético que se uniu contra a Rússia (sapo.pt)
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