"Nunca pensámos que um dia viveríamos aqui. Até porque os portugueses que conhecíamos que foram há 40 ou 50 anos para a Venezuela diziam que não queriam voltar a Portugal", diz Ylisabeth Teixeira. (Fotografia Maria João Gala)
Nos últimos anos, 4,5 milhões de venezuelanos já saíram do país. Para trás ficam as conquistas de uma vida e a esperança de que um dia a Venezuela volte a ser um porto seguro.
Texto de Ana Rita Costa
Um dia o medo bateu-lhes à porta e tiveram de partir para um lugar onde nunca tinham aterrado, deixando para trás uma vida construída a pulso e quase todos os que amam. Esta é a história de 25, mas também de milhões de outros venezuelanos que nos últimos anos foram empurrados para fora de portas por um contexto social, político e económico que deu origem a uma das mais graves crises de deslocamento do mundo e a maior da história recente da região.
Juan Perez e Ylisabeth Teixeira conheceram-se em 2007, em Barquisimeto, perto da capital da Venezuela, Caracas, no Banco Mercantil, onde ela trabalhou 14 anos até se tornar gerente de uma unidade bancária e onde ele trabalhava como caixa para pagar o curso de Contabilidade na universidade.
Apaixonaram-se e dois anos depois casaram-se. Filha de emigrantes portugueses da Madeira que no final dos anos 1950 rumaram à Venezuela para fugir à ditadura e à pobreza, Ylisabeth Teixeira nunca imaginou que um dia também teria de fugir do seu país. “Os meus pais foram para a Venezuela à procura de um futuro melhor. Construíram as suas casas e o meu pai teve uma padaria e uma loja de fotografia”, conta.
“Chegámos a Portugal em setembro de 2017, mas começámos a sentir que talvez tivéssemos de sair da Venezuela dois anos antes”, explica Ylisabeth.
Depois de primeiros casamentos, João e Maria Isabel conheceram-se e tiveram Ylisabeth, hoje com 42 anos. “Viveram na Venezuela quase 60 anos e construíram tudo o que tinham com muito trabalho. Há 15 anos o meu pai por morreu”. Já não viveu para ver no que se tornaria a Venezuela e que a sua filha acabaria por repetir os seus passos. Mas já lá vamos.
Com Juan Perez, de 37 anos, Ylisabeth acabaria por comprar uma casa e ter dois filhos, Isabella Sophia, com 8 anos, e Fabian Josué, com 6. Porém, a situação política em que a Venezuela mergulhou acabaria por lhes interromper a vida e estragar os planos. “Chegámos a Portugal em setembro de 2017, mas começámos a sentir que talvez tivéssemos de sair da Venezuela dois anos antes“, explica Ylisabeth. O acesso a bens e serviços começou a ser cada vez mais difícil, deixou de haver água potável, a eletricidade era racionada a cada quatro horas e a pouca comida existente chegava aos supermercados a preços inflacionados que não podiam suportar.
“O salário mínimo da Venezuela é atualmente de 150 mil bolívares, mas uma pequena embalagem de leite em pó, de 400 gramas, custa cerca de 100 mil bolívares, quatro latas de atum custam 149 mil bolívares, uma caixa de ovos custa 130 mil bolívares e um quilo de carne varia entre 65 mil e 80 mil bolívares. É insuportável. É uma economia em que os preços mudam todos os dias, de acordo com o dólar no mercado negro”, conta Juan.
Ao alcance da corrupção
Tornou-se impossível dar aos filhos as condições de vida a que estavam habituados. Mas só perceberam que teriam de abandonar o país no dia em que Juan recebeu a notícia de que o seu primo tinha sido sequestrado e espancado por um grupo de criminosos que em troca exigiam uma recompensa.
“Comecei a sentir muito medo pelos meus filhos e pedi ao meu irmão, que é polícia, para passar a levá-los ao colégio. Eles, obviamente, não entendiam porquê, mas passei a ter medo de sair de casa e de ser sequestrado ou assaltado. Viver esta sensação é horrível. Sentir que nos podem sequestrar um filho…[suspiro]. A segurança não tem preço e nem todo o dinheiro do mundo pode comprar a tranquilidade”, conta Juan Perez.
Perdemos toda a nossa esperança de que o país melhore. Os líderes que se levantam para fazer cumprir a Constituição são comprados pelo “narcogoverno”, que quer prolongar o tempo destes “sem-vergonha” no poder”.
Revoltado com a situação que se vive na Venezuela, Juan explica que “as manifestações ou protestos feitos pela população contra o governo devido às más políticas e à má administração levam as forças policiais a reprimir as pessoas, inclusive a atirar sobre os manifestantes. É incrível que haja pessoas a comer do lixo num país tão rico. O país mais rico do mundo em reservas de petróleo… São inacreditáveis os ideais que este governo conseguiu implantar na Venezuela e que fazem que a população pense que a culpa é do “império yankee” e não deles mesmos. E o pior é que a maioria dos países sabe o que se vive na Venezuela e não faz nada porque o governo ilegítimo do país os comprou com petróleo. Perdemos toda a nossa esperança de que o país melhore. Os líderes que se levantam para fazer cumprir a Constituição são comprados pelo “narcogoverno”, que quer prolongar o tempo destes “sem-vergonha” no poder”.
Sem nada
A vida de angústia e medo que passaram a viver levou Juan e Ylisabeth a mudarem todos os seus planos. Durante sete meses, Juan esteve nos EUA a trabalhar para poder comprar os bilhetes de avião para virem para Portugal, um país onde nunca tinham estado, apesar das origens portuguesas de Ylisabeth, e sobre o qual só sabiam que “é bom para fazer turismo”.
Em agosto de 2018, Juan vem dos EUA para Oliveira do Bairro, onde com uma poupança de cinco mil euros – que “da noite para o dia ficou em metade” – arrendou uma casa para a família. Para trás, na Venezuela, ficaram Ylisabeth e os filhos.
“Sozinha, tinha de trabalhar, levar os nossos filhos à escola, comprar comida…Admiro-a muito. Aprendemos que o medo só desaparece quando fazemos com que as coisas aconteçam”, conta o marido.
A 17 de setembro de 2018, Ylisabeth Teixeira entraria finalmente num avião, de braço dado com os filhos e a mãe, Maria Isabel, para rumar a Portugal. Na mala, trazia “apenas roupa e sonhos” e “muita vontade de seguir em frente”. “Não é fácil explicar o que se sente quando se entra num avião sem saber se podemos voltar ao nosso país”, confessa Ylisabeth.
“Nunca pensámos que um dia iríamos viver aqui. Até porque os portugueses que conhecíamos que foram para a Venezuela há 40 ou 50 anos diziam que não queriam voltar a Portugal, a não ser para visitar a família”, acrescenta Ylisabeth.
Reconstruir uma vida
Chegados a Portugal, enfrentaram outro desafio. Encontrar trabalho sem falar a língua numa região onde as opções vão pouco além da manufatura. “O início foi complicado. Ficámos sem dinheiro. Além disso, ambos temos formação universitária e se viam que a Ylisabeth tinha sido gerente de um banco não lhe davam trabalho numa fábrica, mas também não lhe abriam portas a um trabalho mais qualificado. Percebemos que tínhamos de dizer que as nossas habilitações não iam além do 12.º ano”, conta Juan.
“Chora muito todos os dias porque não entende porque é que isto lhe está a acontecer a ela. Não esperávamos”, diz Ylisabeth.
Por ter dupla nacionalidade e cartão de cidadão, um mês depois Ylisabeth já estava a trabalhar numa fábrica de cerâmica, que acabou por trocar por uma padaria devido à exigência física e aos pesados turnos, realidade a que não estava habituada. Para Juan, o trabalho numa fábrica de mobiliário só chegaria em janeiro de 2019, depois de se mudarem para o Rego, em Aveiro, e conseguir um visto de residência temporário.
Juan conta que os primeiros tempos “foram muito frustrantes. Depois decidimos vir para o Rego e as pessoas ficaram a saber da nossa história e com a ajuda da Cáritas agiram muito rapidamente. Foram muito bons connosco. Deram-nos roupas, comida para quatro meses, mobiliário e uma máquina de lavar roupa. Esta mudança acabou por se transformar num melhor rumo”.
Em Portugal, a vida ainda não é aquela com que sonharam, mas os filhos, Isabella e Fabian, já falam português, têm amigos e não querem pensar em voltar para a Venezuela. Juan e Ylisabeth, contudo, falam com o desânimo de quem já passou por várias provações. Em abril receberam uma notícia que lhes voltou a tirar o sono. Maria Isabel, mãe de Ylisabeth, agora com 83 anos, foi diagnosticada com um cancro no reto. “Chora muito todos os dias porque não entende porque é que isto lhe está a acontecer a ela. Não esperávamos”, diz Ylisabeth.
Juan voltará a passar o Natal longe dos pais, dos irmãos e dos amigos. “Sinto a falta deles todos os dias. Nem consigo explicar”, confessa em lágrimas. Voltar para a Venezuela um dia é, nas palavras de Juan, “apenas um sonho”, “mas temos a certeza de que daqui para a frente só pode melhorar. Vivemos com tranquilidade e em segurança. Temos razões para seguir em frente.” A dor de estarem longe do seu país não durará para sempre, acreditam. Nada dura.
https://life.dn.pt/da-venezuela-para-portugal-a-historia-de-juan-e-ylisabeth/historias/354899/
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