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“Ninguém pensou quanto é que isto ia custar no futuro”. Autarquias vão ter de suportar “centenas de milhões de euros” com novas casas do PRR


Casas de Lisboa em perigo de colapso (Armando Franca/ Getty Images)

Os custos que as autarquias vão ter de suportar para manter as 26 mil casas construídas através dos fundos do PRR até 2026 vão representar "no mínimo 13 milhões de euros por ano". O cálculo é feito pelo presidente do Comité Português de Coordenação da Habitação Social e revelado à CNN Portugal, numa entrevista onde garante que o próprio prazo definido para a construção destas habitações não é realista. João Carvalhosa avisa que as autarquias estão a ver os concursos lançados para a construção de habitação social vazios uma vez que as construtoras não estão a aderir, já que "há uma diferença de preço entre aquilo que eram os cadernos de encargos base e aquilo que era o preço de mercado atual"

Está prevista a criação de 26 mil novas casas para habitação social até 2026, ao abrigo do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência). Até ao momento terá sido atribuído 28,3% dos 1,2 mil milhões de euros disponíveis, mas só 4,5% foi executado. Considera que a meta continua realista?

Eu diria que não. Por dois motivos. Primeiro, há uma questão temporal, porque fazer projetos, concursos, construir, executar, acabar a obra em três anos é um prazo muito curto. Depois, porque aquilo que tem vindo a verificar-se em vários municípios é que os concursos lançados para a construção de novas casas ficaram desertos. E isto aconteceu porque esse concursos foram preparados na lógica de 2021 e 2022, sem contar com a inflação e com a subida gigante de preços.

Os concursos ficaram desertos porque não se conseguiu cativar as construtoras?

Sim. Há uma diferença de preço entre aquilo que eram os cadernos de encargos base e aquilo que era o preço de mercado atual. E isso está a verificar-se atualmente pois vários municípios lançaram concursos que depois ficaram desertos. E houve aqui alguma inflexibilidade por parte da gestão do PRR em não querer alterar os pressupostos que estavam na base desses concursos. Ora, se esses pressupostos já não colavam com o mercado, então, torna-se impossível fazer o concurso. 

 

João Carvalhosa, presidente do Comité Português de Coordenação da Habitação Social. D.R 

O que é que os municípios podem fazer para ultrapassar esse problema?

As autarquias terão de pôr mais dinheiro do seu bolso para lançar um novo concurso, já com uma margem de valor que permita às construtoras concorrer. Ainda assim, a construção hoje em dia está com um grave problema de mão de obra e as próprias empresas de construção não existem em quantidade suficiente em Portugal. 

A construção civil foi um dos setores mais afetados durante a pandemia.

Muitas já tinham fechado antes com a crise da construção e nunca reativam e com a pandemia ainda foi pior, porque houve empresas que ou venderam máquinas ou reduziram o pessoal durante a pandemia e quando o mercado reativou, não conseguiram comprar máquinas a tempo, não conseguem contratar pessoas.

O que está a dizer é que as empresas não conseguem fazer face à procura?

Para acompanhar a procura, sim. Hoje em dia, creio que não é um problema de dinheiro, é um problema de facto de não termos um sector de construção que consiga dar resposta à procura.

As autarquias vão receber, entretanto, os milhões do PRR para este programa de habitação social.  É suficiente?     

O PRR está a dar dinheiro para construir ou comprar 26 mil casas. Mas, na realidade, todos os encargos subsequentes da manutenção, da gestão, da requalificação, da reabilitação dessas 26 mil casas vão a seguir cair nos municípios. O prédio tem que ter elevadores, o que tem um custo; tem de haver manutenção da pintura da fachada, tem de se fazer reparações no telhado. Tudo isto tem um custo. 

Tem algumas estimativa sobre o valor desses custos?

No mínimo estamos a falar de 13 milhões de euros. Isto em termos de despesas correntes. É um valor muito significativo que pode subir consoante as necessidades de obras e renovações, mas se calcularmos a longo prazo, estamos a falar de centenas de milhões de euros que estas autarquias vão ter de suportar. E este valor não está contemplado em nenhum PRR, nem nada. O que significa que é um encargo que os municípios estão a assumir nos próximos 100 anos, que é o tempo de vida de uma casa.

Esse aspeto não foi levado em conta?

Creio que ninguém pensou quanto é que isto ia custar no futuro, ou como vão acomodar nos orçamentos plurianuais de cada autarquia.

Essa situação pode causar problemas económicos nas autarquias?

Nos que são mais frágeis economicamente, ou que têm menos população. Não serão as câmaras de Lisboa e do Porto que terão esses problemas, pois irão ficar com mais 3 mil casas, mas já gerem 25 mil e têm um orçamento na ordem dos mil milhões de euros. Ainda assim, é claro que vão ter de ir buscar este dinheiro a algum lado. Mas o caso torna-se diferente para as câmaras mais pequenas que constroem entre 300 a 400 casas e vão ter de suportar os custos destas novas casas. Além do custo que terão com gestão do pessoal.

Mas o retorno para a economia resultante da construção destas casas não ajudará a colmatar estes custos? Na Escócia, por exemplo, calcularam que a construção de 15.562 novas casas em 2014 gerou 3,2 mil milhões de libras (cerca de 3,6 mil milhões de euros) que foram trazidas para a economia escocesa. Não podemos obter um resultado semelhante?

Quando se tem o mercado a funcionar, e se está, por exemplo, permanentemente a construir, esse é o resultado, aqui estamos a falar de uma coisa que é ‘Constrói, acaba, acabou’. Quando há um setor muito dinâmico, sempre de investimento, de reinvestimento,, de facto, há um valor acrescentado quase permanente na economia. Mas não é o nosso caso, porque nós não construímos. Na última década, a Câmara de Lisboa construiu 17 casas por ano, em média, não é nada. 

É claro que estes fogos todos vão dar emprego no futuro, porque vai ser preciso mantê-los. A questão aqui é quem é que paga, porque depois as rendas que são praticadas no arrendamento social estão muito longe de serem suficientes para pagar os custos. Ainda estamos a falar em rendas que se calhar representam um quinto, um sexto, ou um sétimo daquilo que é o valor real de custo. O resto é tudo assegurado pelos municípios.

Tem alertado, como presidente do Comité Português de Coordenação da Habitação Social, que Portugal tem uma taxa de mobilidade na habitação social muito baixa, e que, em muitos anos, “nem ao 1% chega”. Quais são as principais razões para isso acontecer?

O problema principal é a legislação não permitir, por exemplo, a partir do momento que uma pessoa atinge um determinado nível de rendimento, ter que deixar a casa ou pagar a mesma através da renda de mercado. A família que está numa habitação social, mesmo que ganhe muito, não vai pagar mais do que um determinado valor. Isto faz com que não haja saída de pessoas: a família entra e depois perpetua-se no fogo e entretanto nascem os filhos e estes mais tarde passam a ser titulares, tornando-se um ciclo que pode durar gerações. 

Tem acompanhado este problema ao nível europeu, que soluções estão a ser encontradas?

A questão é que nos outros países são muito mais rigorosos na verificação dos rendimentos e não há estas limitações de renda. Portanto, se a pessoa ganha mais e tem dinheiro para pagar, paga. No caso holandês e no caso alemão, as pessoas têm subsídios para o arrendamento, a família tem direito a um valor para pagar a renda consoante aquilo que ganha. Se essa família já ganha o suficiente e deixa de ter direito a esse cheque-habitação, provavelmente torna-se menos atrativo continuar a viver naquela casa.

Acha que em Portugal existe uma guetização da habitação social? 

Completamente. Eu já há muitos anos que digo que se devia acabar com os bairros sociais. Isto não quer dizer acabar com a habitação social, como é óbvio. Agora, devia haver um programa de fundo para reconverter e ‘disseminar’ as pessoas pelas cidades. O que reparamos é que a construção concentrada cria, obviamente, uma guetização. E eu fico muito triste quando, ainda em 2023, na pouca construção que apesar de tudo se vai fazendo, a opção seja sempre: "vou construir ali três edifícios ou cinco edifícios naquela rua para realojar as pessoas". É um erro.

Por outro lado, os bairros são mal construídos e mal planeados. Imagine que tem um bairro em forma de quadrado que com uma praça no meio. Esse será um bairro mal planeado, em termos sociais. E se a decisão for colocar ali só famílias de classe muito baixa, há maior probabilidade de aquela zona do meio se tornar numa zona de tráfico, escura e de difícil acesso à polícia.

Relativamente às dificuldades no acesso à habitação social, tem defendido também a necessidade de existir uma base de dados que cruze informação sobre a habitação social entre municípios. Qual seria a vantagem de ter esta base de dados?

É essencial para evitar, especialmente, casos de fraudes, nomeadamente quem pede casas em vários municípios, ou que se increve para a habitação social já lhe tendo sido atribuída uma casa noutro município. Como a habitação social é uma competência dos municípios, o problema reside em que cada município trabalha para si e não fala com outros.

Desde 2013 que tenta avançar com essa proposta. Porque nunca foi aplicada?

Eu tentei fazer isso há uns anos atrás e esbarrei na Comissão Nacional de Proteção de Dados. Reuni-me com eles e expliquei-lhes que era uma coisa simples, que bastava ter o número de contribuinte, mas nunca cheguei a receber um parecer. isto é uma ferramenta informática e qualquer informático faz isto em meia hora.

Como avalia a proposta de arrendamento coercivo de imóveis devolutos?.Vai mitigar a crise habitacional que se faz sentir no país?

Não. Vai ter o efeito contrário. Este tipo de medidas que são geralmente agressivas têm um efeito contrário nos mercados. Organizámos em abril uma conferência que recebeu académicos que apresentaram estudos sobre os efeitos deste tipo de medidas noutros países. E os efeitos são incrivelmente negativos e num curto espaço de tempo.  Ou seja, no espaço de um ano, mesmo logo a seguir a ser implementado.

Que efeitos são esses?

Qualquer pessoa perante uma incerteza retrai-se. E, se souber que é tudo muito instável, muitas pessoas não vão colocar a casa no mercado. Além disso, no caso daqueles que as colocam no mercado, o que se observa  é que vão pedir um preço mais alto já para se precaverem das subidas. Vou-lhe dar um exemplo muito simples: alguém que, hoje em dia, vá pôr a casa no mercado a arrendar, sabendo que o Governo emitiu uma norma que diz que o valor não pode subir mais do que uma determinada fasquia, vai colocar a renda a mais 15% ou 20% ou 30% do valor da casa. 


“Ninguém pensou quanto é que isto ia custar no futuro”. Autarquias vão ter de suportar “centenas de milhões de euros” com novas casas do PRR - CNN Portugal (iol.pt)


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