O responsável português pela fiscalização do uso das verbas do PRR, a famigerada bazuca, explicou que controla o uso do dinheiro dos europeus enquanto português. Segundo o inspector-geral das Finanças, o que importa é que os euros venham, ser-se rigoroso quanto a como se gastam não é necessariamente tão relevante. Imagina-se a cara dos neerlandeses ao lerem isto (sim, o que se diz cá também se sabe lá fora). Sobretudo agora, quando começou o debate sobre as regras que se devem aplicar às finanças públicas de cada Estado membro.
Na semana passada, a Comissão Europeia apresentou a sua proposta para a revisão das regras de governação económica da zona Euro – o que habitualmente se conhece como Pacto de Estabilidade e Crescimento. Imediatamente (a Alemanha antes, mesmo) os países ditos frugais deixaram saber que estão preocupados com a excessiva flexibilidade dada aos incumpridores, com o excessivo poder não escrutinável da Comissão e, sem o dizerem, com as más práticas dos outros, os que estimam serem perdulários - onde se inclui França, já agora.
Enquanto isso, o inspetor-geral das Finanças diz que sim, que fiscaliza na ótica do utilizador. Concreta e assumidamente, nas palavras do próprio António Ferreira dos Santos: “fazemos, pelo menos, o que tem sido suficiente e reconhecido para garantir que todos os anos, anos após ano, ao longo destes anos, os nossos pareceres são sempre aprovados, isto é, a torneira dos dinheiros europeus não fecha. Porque é isso que está em causa se não fizermos um parecer, ou se não dermos um parecer positivo, se classificarmos o sistema de controlo, digamos, a um nível inferior, corre-se o risco de suspensão de pagamentos no momento seguinte”. Depois espantamo-nos.
No tempo da troika na Grécia, ficaram famosas algumas histórias: a jovem idade de reforma das cabeleireiras, o número de jardineiros de um hospital em Atenas e a suposta falsificação de dados do levantamento de árvores plantadas para recebimento de subsídios. Tudo isso podem ser historietas que não são necessariamente verdadeiras e, mesmo que sejam, não revelam a realidade. Certo. Tal como o episódio do ministro neerlandês sobre os que se endividam e gastam tudo em mulheres e vinho.
Mas há perceções de ambos os lados. Assim como nós achamos que eles são forretas, não são tão isentos de culpas quanto isso ou não têm tanta razão moral como fazem crer, do lado de lá também há a convicção de que parte da nossa miséria é culpa própria precisamente, e é esse o ponto, porque nos falta mais responsabilidade a gerir o dinheiro do que dinheiro propriamente dito. Ora, no seu empenho nacionalista, o senhor diretor geral das Finanças deu razão aos temores dos nórdicos. E, como se viu nas eleições finlandesas, onde as suspeitas de prodigalidade da primeira-ministra Sanna Marin ditaram o seu despedimento, essas coisas contam. E não é só à direita. Os outros sociais democratas escandinavos não são mãos largas em casa nem pretendem ser connosco.
A discussão das regras da governação económica da zona Euro é daqueles temas que suscita paixões quando se trata de aplicar, mas que passa demasiado despercebido quando se escrevem. Em 2011 e nos anos seguintes, não faltaram prognósticos depois do jogo. Afinal, e como alguns tinham dito e sido acusados de antieuropeísmo, nacionalismo e outras coisas feias, as condições para pertencer à zona Euro eram difíceis de cumprir, a entrada na zona Euro facilitava um endividamento que nos sairia caro e uma verdadeira União Monetária implica transferências internas e, consequentemente, controlo (para não chamar supervisão) orçamental por terceiros (ou, no mínimo, partilhada).
Toda essa conversa está de volta. E os problemas inerentes também. Não é possível querer uma União Monetária e regras orçamentais ao gosto de cada um. Não é viável partilhar o risco e não querer partilhar o controlo do risco. Mas também não é boa ideia que a política orçamental, talvez a política nacional mais importante e que mais deve poder depender das escolhas dos eleitores e das políticas dos governos, seja uma imposição de terceiros ou uma bitola absolutamente estreita. Essa discussão começa agora. Em Bruxelas, necessariamente. Cá, se quisermos e soubermos.
À boleia da história que foi notícia no Expresso da semana passada, uma das missões mais verdadeiramente patrióticas, na academia, por exemplo, mas nas instituições políticas também, era a de estudar com detalhe como estamos a usar o dinheiro do PRR, quais os resultados esperados, agora, e alcançados daqui a uns anos. E, já agora, como é que outros o têm feito. Não é impossível suspeitar que teríamos algumas desilusões que nem que o senhor inspetor-geral passasse uma semana na área de serviço de Aveiras a rever relatórios se resolveriam.
Não se trata de pensar em fraudes, mas de questionar as escolhas. Sem estudos, não saberemos quem tem razão. Mas os frugais podem um dia invocar o senhor inspetor para justificar as suas dúvidas sobre as nossas dívidas.
Ai se os frugais sabem como gastamos - Expresso
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