Franceses querem "bloquear tudo" já hoje. "A situação em França é caótica e é perigosa para a Europa"
Protestos desta quarta-feira vão juntar mais de 100 mil pessoas e podem tornar-se um "cocktail molotov explosivo". O especialista em Relações Internacionais, Miguel Baumgartner, teme que este seja o princípio do fim da coesão europeia
A crise económica francesa deu origem a uma crise política e está a um passo de se tornar uma crise social. Milhares de franceses vão manifestar-se esta quarta-feira nas ruas do país e nem a nomeação do novo primeiro-ministro na véspera demoveu os protestos. São esperadas mais de 100 mil pessoas, foram destacados mais de 80 mil polícias.
"A situação em França é caótica e é perigosa para a Europa. Está a ferro e fogo e, infelizmente, este presidente não tem mais mão, e pior ainda é que não tem um projeto para França, não tem nada para oferecer", diz à CNN Portugal Miguel Baumgartner, especialista em Relações Internacionais.
Podemos, por isso, esperar "caixotes do lixo incendiados e carros virados ao contrário", um "cocktail molotov explosivo", porque a "a sociedade francesa está polarizada de uma forma cada vez mais brutal". “Tanto este protesto como a greve geral prevista para a próxima semana vão paralisar França. E como França é um país que está no coração do continente vai paralisar parte da Europa”, antecipa o comentador da CNN Portugal.
A agência noticiosa Reuters avança que os protestos podem atingir aeroportos, estações de comboios e autoestradas com bloqueios ou atos de sabotagem.
A catadupa de acontecimentos que levou aos protestos teve início na dívida francesa – que já está nos 114% do PIB e é a terceira mais alta da União Europeia depois da grega e italiana. Perante este cenário, o até então primeiro-ministro François Bayrou apresentou um plano de austeridade com cortes a ascender a 44 mil milhões de euros, acompanhado de uma moção de confiança no parlamento que acabou por correr mal. O governo francês caiu uma vez mais, Macron recusou convocar eleições ou nomear um primeiro-ministro mais à esquerda, o que os analistas esperavam que acontecesse desta vez para apaziguar os ânimos dos Socialistas na Assembleia Nacional.
De nada valeu e de nada valeria. "Bloquear tudo" é o mote para a contestação desta quarta-feira.
Em França, os protestos têm e sempre tiveram uma dimensão diferente e, por isso, vão "ser um problema sério", acredita Miguel Baumgartner. Na noite de 31 de maio, por exemplo, nem sequer havia uma contestação marcada e a situação rapidamente escalou quando o PSG conquistou a primeira Liga dos Campeões da sua história. A noite que deveria ter sido de festa deu lugar a uma madrugada de notícias que davam conta de dois mortos, 192 feridos e 559 detidos nos festejos.
Macron é o alvo
A segunda maior economia da Europa está a afundar-se e há cada vez mais franceses ansiosos por uma mudança, por verem "efetivamente algo a mudar", cansados das "perdas de tempo" de Emmanuel Macron à frente dos destinos do país. São eles os rostos dos milhares de manifestantes mas não só. Atrás dos descontentes vem ainda "toda a extrema-direita de Marine Le Pen e Jordan Bardella", parte da extrema-esquerda e, claro, os jovens, antevê Miguel Baumgartner.
A revolta é o culminar da junção "da recessão económica, da obrigatoriedade de aumentar os impostos - num país que já tem os maiores impostos da União Europeia -, do facto de se falar que não existe dinheiro suficiente nos próximos meses para pagar aos funcionários públicos, sendo que a França é o país da Europa que tem mais funcionários públicos, e da possibilidade da França ter de pedir um regaste ao FMI, como aconteceu com Sócrates", diz o especialista em Relações Internacionais, sublinhando, porém, que este não é um problema exclusivamente francês: "Está a acontecer em toda a Europa, mas França tem sempre uma forma mais brutal e mais especial de o mostrar, é o cansaço das pessoas para políticos e políticas fracassadas."
"Os jovens não têm perspectivas em França, saem cada vez mais tarde de casa dos pais - tal como em Portugal -, não conseguem trabalhos dignos, existe desemprego no país, existe uma população descontente porque não consegue ver um crescimento económico do país", explica.
Com a nomeação do quarto primeiro-ministro desde que foi reeleito, há dois anos, é claro para Miguel Baumgartner que "Macron hoje não tem mais nada para oferecer e, neste momento, é efetivamente um presidente mas não é mais o presidente que toma decisões, está morto politicamente". No entanto, o mandato do presidente francês só termina em 2027, pelo que "os protestos vão aumentar" e, esta quarta-feira, vamos assistir ao "descalabro de tudo isto".
Na terça-feira, aliás, em pelo menos nove mesquitas francesas surgiram cabeças de porco, algumas com a inscrição Macron. A associação entre o presidente e os suínos não é nova e já tinha sido utilizada pelos descontentes nos protestos de 2023, quando Macron tentou forçar a reforma do sistema de pensões.
Mas Miguel Baumgartner acredita que "Macron vai resistir", "não se vai demitir, não vai abandonar o cargo, porque seria o único presidente da Quinta República a fazê-lo". E antecipa outro cenário: "Vai tentar fazer um golpe de força, possivelmente ao final do dia vai fazer uma declaração aos franceses, vai dizer que há distúrbios na rua, que isto é extrema-direita e extrema-esquerda, que ele é a única pessoa que pode trazer ordem e vai tentar convencer os socialistas franceses a fazer um governo de uma grande coligação - pelo menos para resistir até 2027."
Primeiro França, depois UE
O presidente francês, neste momento, não tem o parlamento consigo e isto é um risco para a França, para a União Europeia e também para a Ucrânia. "Se Macron quiser aprovar um novo pacote de financiamento para a Ucrânia ou quiser aprovar o envio de tropas para a Ucrânia - todos aqueles princípios das garantias de segurança - não o vai conseguir fazer, porque como isto terá de passar pela Assembleia Nacional, onde Macron não tem maioria, depois deste descalabro político, vamos ter o presidente de França a dizer que apoiamos a Ucrânia, mas depois a Assembleia Nacional a não votar o apoio à Ucrânia."
Quanto à UE, a chegada de Le Pen, Jordan Bardella e do Reagrupamento Nacional ao poder "é só uma questão de tempo". Miguel Baumgartner recorda que Le Pen defende um Frexit, não gosta assim tanto da moeda comum e continua a defender que Bruxelas não deve continuar a apoiar a Ucrânia ad aeternum. Um cenário que se complica ainda mais perante a possibilidade de Nigel Farage chegar ao poder no Reino Unido e de os Países Baixos se virarem para a extrema-direita.
"A Alemanha sozinha a tentar assegurar uma Europa unida...", teoriza Baumgartner, antecipando: "Isto é inevitável, a coesão da Europa será uma vítima colateral da guerra na Ucrânia."
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