"Era menor que um grão de arroz, começámos a cortá-lo e a olhar para ele, era realmente bonito": era um pedaço de cérebro humano
E esse pedaço de cérebro foi o início de uma descoberta "notável" e "maravilhosa" agora revelada
Google e Harvard revelam o mapa mais detalhado de sempre do cérebro humano
por Jacopo Prisco, CNN
Há dez anos, Jeff Lichtman - professor de biologia molecular e celular na Universidade de Harvard - recebeu uma pequena amostra de cérebro no seu laboratório.
Embora minúsculo, o 1 milímetro cúbico de tecido era suficientemente grande para conter 57.000 células, 230 milímetros de vasos sanguíneos e 150 milhões de sinapses.
"Era menor que um grão de arroz, mas começámos a cortá-lo e a olhar para ele e era realmente bonito", diz. "Mas, à medida que íamos acumulando os dados, apercebi-me de que tínhamos muito, muito mais do que aquilo com que podíamos lidar."
Por fim, Lichtman e a sua equipa acabaram por obter 1400 terabytes de dados da amostra - aproximadamente o conteúdo de mais de mil milhões de livros. Agora, após uma década de estreita colaboração da equipa do laboratório com cientistas da Google, esses dados transformaram-se no mapa mais detalhado de uma amostra de cérebro humano alguma vez criado.
300 milhões de imagens
A amostra de cérebro veio de um paciente com epilepsia grave. Segundo Lichtman, o procedimento habitual é remover uma pequena porção do cérebro para parar as convulsões e depois analisar o tecido para verificar se está normal. "Mas a amostra era anónima, pelo que não sabia quase nada sobre o doente, a não ser a idade e o sexo."
Para analisar a amostra, Lichtman e a sua equipa começaram por cortá-la em secções finas utilizando uma faca com uma lâmina de diamante. As secções foram depois mergulhadas numa resina dura e cortadas novamente, muito finas. "Cerca de 30 nanómetros, ou seja, aproximadamente um milésimo da espessura de um cabelo humano. Eram praticamente invisíveis, se não fosse o facto de as termos tingido com metais pesados, o que as tornava visíveis quando se faziam imagens de eletrões."
A equipa acabou por obter vários milhares de fatias, que foram recolhidas com uma fita adesiva feita à medida, criando uma espécie de tira de filme: "Se tirarmos uma fotografia de cada uma dessas secções e alinharmos essas imagens, obtemos um pedaço tridimensional do cérebro ao nível microscópico".
Foi nessa altura que os investigadores perceberam que precisavam de ajuda com os dados porque as imagens resultantes iriam ocupar uma quantidade significativa de armazenamento.
Lichtman sabia que a Google estava a trabalhar num mapa digital do cérebro de uma mosca da fruta, lançado em 2019, e tinha o hardware de computador certo para o trabalho. Entrou em contacto com Viren Jain, um investigador sénior da Google que estava a trabalhar no projeto da mosca da fruta.
"Havia 300 milhões de imagens separadas nos dados de Harvard", conta Jain. "O que faz com que haja tantos dados é o facto de estarmos a obter imagens com uma resolução muito elevada, ao nível de uma sinapse individual. E só nessa pequena amostra de tecido cerebral havia 150 milhões de sinapses."
Para dar sentido às imagens, os cientistas da Google utilizaram processamento e análise baseados em inteligência artificial, identificando o tipo de células presentes em cada imagem e a forma como estavam ligadas. O resultado é um modelo 3D interativo do tecido cerebral e o maior conjunto de dados alguma vez obtido com esta resolução da estrutura de um cérebro humano. A Google disponibilizou-o online com o nome 'Neuroglancer' e, na mesma altura, foi publicado um estudo na revista Science do qual Lichtman e Jain são coautores.
Compreender o cérebro
A colaboração entre as equipas de Harvard e da Google resultou em imagens coloridas que tornam os componentes individuais mais visíveis, mas que, de resto, são uma representação fiel do tecido.
"As cores são completamente arbitrárias", explica Jain. "O objetivo é que não estejamos a inventar - estes são os neurónios reais, os fios reais que existem neste cérebro, e estamos apenas a torná-los convenientes e acessíveis para os biólogos verem e estudarem."
Os dados continham algumas surpresas. Por exemplo, em vez de formarem uma única ligação, os pares de neurónios têm mais de 50. "Isto é como se duas casas num quarteirão tivessem 50 linhas telefónicas separadas a ligá-las. O que é que se passa ali? Porque é que estão tão fortemente ligadas? Ainda não sabemos qual é a função ou o significado deste fenómeno, vamos ter de o estudar melhor", diz Jain.
Eventualmente, a observação do cérebro a este nível de pormenor pode ajudar os investigadores a compreender condições médicas não resolvidas, segundo Lichtman.
"O que é que significa compreender o nosso cérebro? O melhor que podemos fazer é descrevê-lo e esperar que, a partir dessas descrições, se perceba, por exemplo, como os cérebros normais são diferentes dos cérebros desordenados em doenças psiquiátricas de adultos ou distúrbios do desenvolvimento, como o espetro do autismo - esse tipo de comparação será muito valioso", explica. "Eventualmente, dar-nos-á uma ideia do que está errado, o que, na maioria dos casos, ainda não sabemos."
Lichtman também acredita que o conjunto de dados pode estar repleto de outros pormenores surpreendentes que, devido à sua dimensão, ainda não foram descobertos: "E é por isso que o estamos a partilhar online, para que qualquer pessoa possa olhar para ele e descobrir coisas."
A seguir, a equipa responsável pelo projeto pretende criar um mapa completo do cérebro de um rato, o que exigiria entre 500 e 1000 vezes a quantidade de dados da amostra do cérebro humano.
"Isso significaria 1 exabyte, ou seja, 1.000 petabytes", diz Lichtman. "Muitas pessoas estão a pensar muito sobre como vamos fazer isto e estamos no primeiro ano de uma prova de princípio de cinco anos. Penso que seria um momento decisivo para a neurociência, ter um diagrama completo da cablagem do cérebro dos mamíferos. Responderia a muitas, muitas perguntas. E, claro, revelaria muitos mais problemas, coisas de que não estávamos à espera."
E que tal mapear um cérebro humano inteiro? Isso seria 1000 vezes maior, diz Lichtman, o que significa que os dados ascenderiam a 1 zettabyte. Em 2016, esse foi o tamanho de todo o tráfego da Internet durante o ano, de acordo com a Cisco. Atualmente, refere Lichtman, não só seria difícil armazenar essa quantidade de dados como também não existiria uma forma eticamente aceitável de obter um cérebro humano imaculado e bem preservado.
Desbravar novos caminhos
Investigadores da mesma área que não estiveram envolvidos no trabalho expressaram o seu entusiasmo quando contactados pela CNN para comentar o assunto.
"Este estudo é maravilhoso e há muito a aprender com dados como este", considera Michael Bienkowski, professor assistente de fisiologia e neurociência na Keck School of Medicine da Universidade do Sul da Califórnia.
"Muito do que pensamos compreender sobre o cérebro humano é extrapolado a partir de animais, mas uma investigação como esta é fundamental para revelar o que verdadeiramente nos torna humanos. A visualização dos neurónios e de outras células cerebrais é um verdadeiro desafio devido à sua densidade e complexidade. O atual conjunto de dados não capta as ligações de longo alcance", afirma Bienkowski.
"De que outras regiões cerebrais provêm estas entradas e para onde vão as saídas depois de deixarem a área? Mas ver todos estes tipos de células diferentes e as suas interações é incrível e faz-nos apreciar a obra-prima de arquitetura que a vida nos deu", acrescenta Bienkowski.
Andreas Tolias, professor de oftalmologia na Universidade de Stanford, na Califórnia, concorda. "Este é um estudo técnico notável que reconstrói a estrutura do córtex humano em alta resolução. Fiquei particularmente entusiasmado com a descoberta de axónios raros capazes de formar até 50 sinapses. Esta descoberta é intrigante e levanta questões importantes sobre os seus papéis computacionais."
O projeto de mapeamento do cérebro abre a porta a futuras investigações, segundo o neurocientista Olaf Sporns.
"Cada cérebro humano é uma vasta rede de milhares de milhões de células nervosas", diz Sporns, professor de ciências psicológicas e cerebrais na Universidade de Indiana. "Esta rede permite que as células comuniquem, em padrões muito específicos que são fundamentais para a memória, o pensamento e o comportamento. Mapear esta rede, o conectoma humano, é fundamental para perceber como funciona o cérebro", acrescenta, referindo que o estudo abre novos caminhos para este importante objetivo e oferece novas e excitantes oportunidades de exploração e descoberta.
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