Triste, assustador e perigoso, e qualquer semelhança com a Venezuela de Chávez e Maduro não é pura coincidência.
Corria o ano de 1992 e o então comandante venezuelano Hugo Chávez, aventurou-se numa tentativa de golpe de Estado militar que o condenou a dois anos de prisão. Quatro anos mais tarde, em 1998, o mesmo Hugo Chávez, numas eleições democráticas, ganhou e tornou-se presidente daquele país. Chávez percebeu que as revoluções contemporâneas já não se faziam com tanques e armas, com ameaças de morte ou exílios forçados; mas, antes, “por dentro” e legitimadas por eleições e processos eleitorais democráticos. Outros, com maior ou menor pudor, e, claro, com maior ou menor sucesso, seguiram-lhe o caminho: Evo Morales, na Bolívia, ou Cristina Kirchner, na Argentina, são exemplos.
Ora, em todos estes fenómenos houve um resultado comum: um nível de corrupção e de concentração de poderes nunca antes vistos em Estados considerados democráticos. No entanto, o exemplo de Hugo Chávez não se limitou (nem se limita) à América Latina.
Em 2013, numa entrevista à televisão pública venezuelana, Pablo Iglesias definiu o país sul-americano como um “ejemplo democrático”. Um ano antes, num tweet entretanto eliminado, Alberto Garzón afirmou que “el único cuyo modelo de consumo es sostenible y tiene un desarrollo humano es… Cuba”. Hoje, em 2020, Pablo Iglesias e Alberto Garzón são, respetivamente, Vice-Presidente e Ministro do Consumo do governo espanhol.
Os perversos, mas inteligentes, dirigentes do Unidas Podemos cedo perceberam que a sua revolución só ultrapassaria a utopia da rua, das Puertas del Sol e das salas de aulas de Ciência Política da Complutense de Madrid, chegando ao governo e ao Palácio da Moncloa. E assim foi; com dois detalhes não menos importantes: primeiro financiados ilegalmente por narco-ditaduras; e segundo, manipulando a opinião pública com a invenção de casos judiciais, apresentando-se como vítimas de realidades paralelas e construídas pelos mesmos. Ainda assim, e com o pior resultado eleitoral de sempre do partido de extrema-esquerda radical, Pablo Iglesias fez checkmate ao PSOE e conseguiu, por fim, um lugar cimeiro no Conselho de Ministros do governo espanhol.
Uma vez no poder, o guião, que nem precisou de ser traduzido, chega a confundir-se com o da Venezuela de Hugo Chávez.
Primeiro objectivo (este ainda em curso): silenciar e vilipendiar a oposição com insultos do tipo fascistas e franquistas, pelo simples facto de, os outros, acharem que retirar os restos mortais de um ditador desaparecido há mais de 40 anos não é um assunto relevante para a Espanha do século XXI, onde o desemprego está prestes a ultrapassar a barreira dos 15% num país com mais de 40 milhões de habitantes.
Segundo objectivo (este aparentemente falhado): adoptar uma postura de confronto declarado a qualquer meio de comunicação social independente, que não siga a narrativa imposta por si e pelo actual governo. Sobre este ponto, o executivo espanhol chegou a exigir, durante a Primavera de 2020, que qualquer jornalista presente nas conferências de imprensa sobre a Covid-19 em Espanha, enviasse as suas perguntas de maneira prévia, para que estas fossem revistas e selecionadas pelo chefe de gabinete de Pedro Sanchéz, o sinistro Iván Redondo, qual Ministro da Verdade Orwelliano. Esta tentativa de silenciamento falhou, porque vários jornalistas e distintos meios de comunicação social de referência, como o El Mundo e o ABC, ameaçaram boicotar esta tentativa deliberada e desavergonhada de tornar as conferências de imprensa em tempo de antena do governo.
Terceiro objectivo (este entretanto atingido): ocupar o lugar de topo no Conselho Nacional de Segurança do Estado espanhol. Com isto, Pablo Iglesias controla hoje todos os segredos de Estado e acede a toda e qualquer informação de segurança considerada classificada. Um perigo, portanto.
Quarto objectivo (este ainda em curso): debilitar o Estado e todas as suas instituições democráticas resultantes (e devidamente sufragadas pelo povo no referendo à Constituição de 1978) da transição para a democracia no final dos anos 70. Numa palavra, abater (admito que em sentido figurado) o Rei e a monarquia constitucional, mesmo que aquando da sua tomada de posse jurassem proteger esse mesmo Rei e cumprir com a Constituição em vigor. E não estou a delirar ou a exagerar. Há um mês, o Vice-Presidente do governo Espanhol definiu como “tarea fundamental” do Unidas Podemos, acabar com a monarquia constitucional. Na sequência destas declarações, o Rei tem sido posto à margem de actos oficiais onde tipicamente participava, como, por exemplo, a tomada de posse dos órgãos judiciais na Catalunha. Com isto, admito que Santiago Carrillo, líder histórico do Partido Comunista espanhol e um dos pais do período de transição, deve estar a dar voltas no caixão, mas adiante.
Quinto objectivo (este é ainda um copo meio cheio, meio vazio): controlar a Justiça. Parte já foi conseguido com a nomeação de Dolores Delgado, até há um ano Ministra da Justiça do governo de Pedro Sanchéz e, hoje, Fiscal General del Estado (o equivalente português à Procuradoria-Geral da República). Uma espécie de braço armado do Executivo de esquerda numa função que se quer independente e apartidária.
E, mais recentemente, alterar a forma como são nomeados os 20 vogais do Consejo General del Poder Judicial – de onde sai o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – e, assim, acabar com o clássico e liberal princípio da separação de poderes. Sim: aquele princípio secular e fundamental de qualquer Estado de Direito e que distingue as democracias ocidentais das tiranias de aqui e ali. Aterrador, dirão. Ora, a proposta surgiu no início desta semana e defende que os 20 juízes passem a ser eleitos por maioria absoluta simples, isto é, metade mais um, em vez da actual maioria reforçada de 3/5 no parlamento espanhol e no senado. Câmaras onde o PSOE, o Unidas Podemos e os partidos independentistas têm, somados, maioria absoluta simples.
Explicado de outra maneira: Pablo Iglesias, Pedro Sanchéz e a entourage de perigosos fanáticos que os seguem, pretendem mudar as regras do jogo e alterar uma lei (mesmo que criticável e com margem de melhoria), aprovada por um governo socialista de Felipe González, para que possam nomear, a dedo, juízes que sirvam os seus interesses particulares. Algo gravíssimo e que, quando visto noutras geografias da Europa, como na Polónia – acusada de destruir o que ainda resta do Estado de Direito naquele país – fez soar todos os alarmes e todas a críticas (e bem!) de Bruxelas e do Partido Socialista Europeu. A oposição espanhola e várias associações de juízes já vieram anunciar que recorrerão a todas as instâncias judiciais domésticas e europeias para travar uma lei que, no seu espírito não pretende mais do que matar o principio da separação de poderes, da independência dos magistrados e do Estado de Direito.
Tudo isto, no meio de uma pandemia, onde Espanha lidera todos os rankings de falecidos, de doentes e de profissionais de saúde infectados com a Covid-19. Tudo isto, no meio de uma crise económica e social sem precedentes: o FMI e a OCDE colocam Espanha como a economia desenvolvida que mais riqueza perderá em 2020, com uma queda do PIB perto dos 15% e com uma taxa de desemprego de guerra que não se recuperará até 2026. Esta semana, o Banco de Espanha alertou para o crescimento do risco de pobreza e que esta poderá atingir 11 milhões de pessoas no final deste ano.
Triste, assustador e perigoso, e qualquer semelhança com a Venezuela de Chávez e Maduro não é pura coincidência. É antes consequência e resultado da mesma cartilha que não vale, além de criar Estados falhados, falidos e que multiplicam a inflação, a pobreza e a fome a um ritmo assustadoramente industrial.
https://observador.pt/opiniao/espanha-a-beira-do-precipicio/
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