Vários projetos estão na mira da justiça no âmbito da investigação do Ministério Público que culminou na demissão de António Costa ao fim de oito anos no poder. São projetos cujo investimento previa mais de oito mil milhões de euros na sua totalidade, segundo os seus valores originais, mas acabaram por sofrer alterações, em particular no caso do hidrogénio verde, com o fim de dois consórcios, que agora estão na mira da justiça portuguesa.
Polémica no hidrogénio em Sines
Era uma vez um holandês que tinha um projeto para criar uma central de hidrogénio verde em Sines para exportá-lo, via navio, para o norte da Europa onde seria usado pela indústria da Alemanha e Países Baixos para substituir o hidrogénio cinzento. O projeto do Resilient Group de Marc Rechter tinha um custo estimado de 3,5 mil milhões de euros e previa a construção de uma fábrica de electrolisadores em escala industrial, outra fábrica para produzir painéis solares fotovoltaicos, uma central solar e uma central de hidrogénio verde.
“Queremos posicionar Sines como o centro principal de hidrogénio do sul da Europa. Queremos apresentar o projeto [na Comissão Europeia] o mais rapidamente possível. Daqui a 10 anos, Sines poderá desenvolver-se como um hub de hidrogénio muito importante do sul da Europa, tem muito boas características”, dizia a 7 de fevereiro de 2020 o empresário holandês sobre o projeto que tinha então o nome de Flamingo Verde (Green Flamingo).
Mas o projeto acabou por sofrer uma grande reviravolta, segundo as denúncias feitas por Marc Rechter no programa “Sexta às 9” da “RTP” em março de 2021.
O empresário denunciou que o ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC) promoveu a criação de um consórcio entre o Resilient Group e várias empresas portuguesas para alavançar o projeto.
“As três empresas que eu contactei foram a Galp, EDP e a REN por serem as 3 grandes empresas de energia em portugal”, disse o então ministro do Ambiente João Pedro Matos Fernandes à “RTP”, que tinha João Galamba como seu braço direito na secretaria de Estado da Energia.
No entanto, apesar das “dezenas” de reuniões, o consórcio nunca avançou, nos moldes iniciais. “Pediram-nos que tentássemos formar um consórcio com eles, e isso não aconteceu. Acabou por nao ser possivel. Envidamos os nosss melhores esforços nesses sentido. Tornou-se claro através de algumas propostas de documentos que havia a intenção de não termos um papel de liderança ou coordenação. E isso era algo que não era aceitável, pois tinhamos criado o projeto, e não esperávamos não estarmos envolvidos num papel mais sério”, disse Marc Rechter ao canal público na altura.
Decidiu então avançar com outro consórcio, mas o projeto acabou suspenso por não cumprir requisitos exigidos pelo MAAC, algo que Marc Rechter considerou não fazer sentido.
O consórcio H2 Sines – projeto da Galp, EDP, REN, Martifer, Vestas e Engie – reagiu na ocasião: “O Resilient Group não integra esse projeto por decisão própria, nomeadamente por pretender que as demais empresas lhe atribuissem benefícios e contrapartidas incompatíveis com o seu contributo para o desenvolvimento do projeto e por não observar os requisitos exigidos para a participação nos processos de reconhecimento do interesse europeu do mesmo”. O consórcio previa um investimento de 1,5 mil milhões de euros, mas acabou por ser desfeito em 2021, com as empresas a rumarem a outros consórcios.
Segundo a “RTP” avançou na altura, o MP suspeitava que Matos Fernandes tinha favorecido o consórcio criado para explorar hidrogénio verde, o H2 Sines. E considerava que o Governo tinha interferido diretamente ao ter promovido por despacho uma seleção de 37 projetos que podem vir a receber apoios do Estado, num júri que contava com elementos do Governo. Estes projetos cumpriam as condições para virem a ser selecionados para fundos europeus, no âmbito dos Projetos de Interesse Comum (IPCEI). Entre estes, encontrava-se o projeto H2 Sines.
“Existe algum contrato assinado? Não. Existe alguma seleção de empresas feita? Não. Existe algum financiamento aprovado? Nao. Existe algum pagamento feito? Também não. É o Estado português que decide quem são as empresas que vão obter apoio? Também não, é a União Europeia. Não imagino o que possa ser o objeto desse inquérito”, afirmou então Matos Fernandes.
Investigações tiveram origem no lítio
As investigações a Matos Fernandes, que foi alvo de buscas, mas que não foi constituído arguido, e a João Galamba, que foi constituído arguido, terão tido início no projeto de lítio de Montalegre, com um investimento previsto de 650 milhões de euros.
A “RTP” noticiou em outubro de 2019 que havia suspeitas de ilegalidades na atribuição da concessão da exploração de lítio em Montalegre. Uma das questões é que a concessão de 35 anos tinha sido atribuída a uma empresa constituída apenas três dias antes da assinatura do contrato, a Lusorecursos. A empresa também contratou na altura Jorge Costa Oliveira, ex-secretário de Estado da Internacionalização, como consultor.
Mais tarde, António Costa foi apanhado numa escuta com Matos Fernandes a 28 de dezembro de 2020 a falar sobre as negociações que estavam a decorrer para definir a futura localização de uma refinaria de lítio, onde foram abordados os eventuais interessados no negócio e a possibilidade de fazer uma parceria com Espanha, revelou o “Expresso” na terça-feira.
Para já, existem apenas dois projetos de refinaria de lítio em Portugal: no projeto da Lusorecursos em Montalegre, e o projeto da Galp e dos suecos da Northvolt previsto para Setúbal, mas falta ainda a decisão final de investimento (FID).
O outro projeto que surge referido pela PGR é a mina do Barroso em Boticas é a Savannah, mas esta é a primeira vez que a empresa surge no radar mediático em relação a investigações. Este projeto prevê um investimento de 110 milhões de euros. Ainda esta semana, a empresa anunciou que tinha contratado o banco britânico Barclays e o fundo australiano Barrenjoey para encontrarem investidores para o projeto. Ambos os projetos de lítio já tiveram luz verde ambiental por parte da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).
Em 2021, a Galp chegou a assinar um contrato com a Savannah Resources que previa a exclusividade na compra do lítio produzido em Boticas pela energética, mas passados seis meses a empresa mineira anunciou o fim da parceria.
Centro de dados sob suspeita
O projeto de criação de um centro de dados em Sines também está sob alvo das autoridades.
A Start Campus arrancou em abril de 2022 com a construção da primeira fase do projeto de dados Sines 4.0. O projeto prevê um investimento total de 3,5 mil milhões de euros e estará terminado em 2027. O projeto vai ser composto por 9 edifícios, oito com 60 MW de capacidade cada, e um com 15 MW. O centro de dados vai ser alimentado com base em energias renováveis.
Entre os arguidos, encontra-se o CEO da Start Campus Afonso Salema, e o administrador e diretor jurídico e de sustentabilidade, o advogado Rui Oliveira Neves, sócio da Morais Leitão e ex-administrador da Galp.
Diogo Lacerda Machado também foi constituído arguido. O amigo de António Costa foi contratado em 2021 pela Start Campus como consultor.
A empresa também foi alvo de buscas e disse estar a “cooperar com as autoridades, fornecendo todas as informações necessárias e solicitadas, para garantir uma investigação completa e imparcial de todos os factos necessários”.
O que está em causa nas buscas das autoridades?
O DCIAP anunciou que poderão estar em causa “factos suscetíveis de constituir crimes de prevaricação, de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e de tráfico de influência”.
Estão a ser investigados factos relacionados com:
– as concessões de exploração de lítio nas minas do Romano (Montalegre) e
do Barroso (Boticas);
– um projeto de central de produção de energia a partir de hidrogénio em
Sines, apresentado por consórcio que se candidatou ao estatuto de Projetos
Importantes de Interesse Comum Europeu (IPCEI);
– o projeto de construção de “data center” desenvolvido na Zona Industrial e
Logística de Sines pela sociedade “Start Campus”.
Quem foi constituído arguido?
O ministro das Infraestruturas João Galamba foi constituído arguido, a par do presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) Nuno Lacasta, o chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vítor Escária, o advogado Diogo Lacerda Machado, conhecido por ser amigo de António Costa, o autarca de Sines Nuno Mascarenhas, e dois administradores da Start Campus Afonso Salema e o advogado Rui Oliveira Neves (ex-Galp).
A que empresas foram realizadas buscas?
As empresas que detêm os projetos que visam a mineração de lítio em Boticas e Montalegre foram hoje alvo de buscas.
A Lusorecursos, dona do projeto de lítio em Montelegre, foi alvo de buscas na sua sede em Braga esta terça-feira, apurou o JE.
Já a Savannah anunciou hoje que tinha sido alvo de buscas, confirmando que as autoridades estiveram hoje presentes em certos locais da empresa em Portugal. “A Savannah cooperou totalmente com as autoridades da investigação e vai continuar a fazê-lo. Nem a Savannah nem nenhum dos seus diretos ou trabalhadores são alvos desta investigação (um termo conhecido como arguido em português)”, segundo o comunicado redigido em inglês.
A empresa confirma que os “seus trabalhos no projeto de lítio do Barroso vão continuar, enquanto decorre a investigação do DCIAP. A concessão da mina, emitido em 2006, permanece imutável e a Savannah tem e vai conduzir os seus negócios de forma legal e transparente”.
Também a REN – Redes Energéticas Nacionais foi hoje alvo de buscas, mas não houve constituição de arguidos, apurou o JE.
A empresa Start Campus em Sines, responsável pelo Data Center, também foi alvo de buscas, assim como a AICEP – Agência de Promoção de Investimento Externo, que gere a zona industrial de Sines.
Que organismos/ministérios foram alvo de buscas?
A Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) foi alvo de buscas relacionadas com o inquérito do Ministério Público que investiga negócios do lítio e do hidrogénio verde, apurou o Jornal Económico.
A DGEG é responsável pelo licenciamento de projetos na área de energia em Portugal.
Também a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) foi alvo de buscas. “A APA confirma existência de buscas na suas instalações sede. Esta agência assume a sua total colaboração com as autoridades no decorrer destas diligências”, segundo fonte oficial do organismo responsável pelo licenciamento ambiental em Portugal.
O presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) foi constituído arguido no âmbito das buscas realizadas hoje a vários ministérios e à residência oficial do primeiro-ministro.
Nuno Lacasta lidera atualmente a APA, um organismo que está na tutela do ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC) e é responsável, entre outras coisas, pelos licenciamentos ambientais.
O ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC) em Lisboa também foi alvo de buscas, confirmou fonte oficial ao JE.
“Confirmamos a realização de buscas no MAAC”, disse a fonte oficial que não respondeu quando questionado sobre quais os motivos das buscas e se alguém tinha sido constituído arguido.
Lítio, hidrogénio e dados. Os projetos de oito mil milhões que derrubaram António Costa (sapo.pt)
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