Vamos ser censurados na net? Conheça a lei que levou a ERC e Ministério Público a alertarem (sem sucesso) o Parlamento
Depois de um ano de processo legislativo, só agora o País acordou para o diploma que veio criar armas contra a desinformação partilhada na Internet. Já promulgada por Belém no início de maio e a entrar em vigor em meados de julho – são 60 dias sobre a publicação em Diário da República, a 17 de maio -, a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital está ser interpretada como uma nova forma de censura por parte do Estado.
Apesar de o normativo prever direitos, liberdades e garantias dos cidadãos no ciberespaço – onde se conta, por exemplo, uma tarifa social de acesso à Internet -, o busílis reside no articulado do artigo 6º., onde se estabelece que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) irá ser quem analisará os conteúdos que forem denunciados como falsos e que o Estado irá patrocinar a criação de mecanismos de fact-checking de notícias e artigos falsos, podendo com esse gesto estabelecer uma espécie de selo de garantia (Safe & True) para os mesmos usarem em cada validação. Este artigo específico terá de ser regulamentado em 180 dias pelo hemiciclo.
Têm sido várias as vozes que se levantam, nos últimos dias, contra as regras criadas, entre elas a do sociólogo António Barreto e a do historiador Pacheco Pereira, que comparam a legislação com os princípios e métodos estabelecidos pelo Estado Novo, de controlo da informação, mensagens e propaganda política, alertando para o risco de se cair numa “rede infernal de delação”, que pode “institucionalizar a censura”. A Iniciativa Liberal, que se absteve na votação desta lei, a 4 de abril, já veio avisar que vai bater-se pela sua alteração. A legislação foi aprovada, sem votos contra e a abstenção do PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal.
ERC contra, Magistrados críticos e Proteção de Dados duvidosa
Porém, as críticas chegaram muito antes – ainda durante a fase de recolha de contribuições de várias entidades, para a discussão dos dois projetos de lei que deram origem ao diploma, da autoria do PS e do PAN.
Com pontuais exceções, como foi o caso da Associação de Defesa do Consumidor (DECO), que disse estar “totalmente de acordo” com regras propostas para o contestado artigo 6.º, o Parlamento foi avisado pela ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Ministério Público, Comissão Nacional de Proteção de Dados e várias outras entidades, principalmente associações de defesa dos direitos de autor, para o risco desta legislação vir a criar conflitos legais. Problemas perante os quais a ERC poderá não ter competências para os resolver, ou até a possível ineficácia da Carta, por duplicar legislação já existente. Mas, José Magalhães, pelo PS, e Inês Sousa Real, pelo PAN, levaram por diante o desenho da fórmula legislativa que idealizaram.
Na documentação anexa ao processo legislativo, o parecer da ERC é extremamente demolidor das intenções do PS e do PAN. O regulador da comunicação social começa por chamar várias vezes à colação que a lei de 2005, que lhe atribuiu as suas competências, terá de ser alterada. Caso contrário, não estará apta a realizar a tarefa que o Parlamento lhe decidiu adjudicar: a de apurar a veracidade das denúncias que lhe cheguem sobre publicações na Internet da autoria de diversas entidades.
Argumentou a ERC que, em relação ao artigo 6º. [na proposta inicial do PS tratava-se do artigo 5º.], “as entidades sujeitas a supervisão e intervenção” da instituição “encontram-se taxativamente elencadas” no diploma que esclarece as suas competências. Ora, “não poderá a ERC intervir sem violar o princípio da legalidade a que está vinculada e das competências que lhe estão cometidas. Considerando o valor reforçado da Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro, apenas a sua alteração viabilizaria a intervenção deste regulador junto de entidades que não se encontram sujeitas à sua supervisão”.
Ainda que entendesse que a Carta tivesse boas intenções, a ERC defendeu que os princípios que ali constavam “carecem de maior aprofundamento e que seriam melhor enquadradas noutros diplomas que não uma carta de princípios”. E voltando de novo ao articulado polémico, além de admitir não poder levar a cabo o trabalho que o legislador lhe quer entregar, ainda levanta dúvida sobre o patrocínio e “incentivos” do Estado a quem se disponibilize a fazer fact-checking. Chega mesmo a alertar para a necessidade de que “tal estímulo não conduz a uma limitação desproporcionada e injustificada da liberdade de expressão”.
Os magistrados do Ministério Público foram um pouco mais além do que uma análise jurídica e na apreciação global consideraram que, mais do que uma tentativa de regular práticas incorretas na Internet, “os projetos legislativos em apreço têm um forte cunho programático: definem objetivos políticos na área das redes de comunicações”. “Em regra, tais objetivos são amplos e poucos precisos”, que ficarão “dependentes” de “outras iniciativas legislativas”. Mais: “as novas normas não trazem qualquer acréscimo útil, uma vez que contextualizam os direitos fundamentais de forma menos ampla”. “Nessa medida, não só não têm qualquer mais valia como potencialmente suscitam insegurança jurídica”, refere-se no parecer do Conselho Superior do Ministério Público.
A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) também não usou meios-termos na análise, alertando para conflitos legislativos com normas nacionais e europeias, no que toca ao específico artigo 6º. e não só. O organismo, liderado por Filipa Calvão, concluiu que os princípios que constam na Carta “repetem direitos regulados por normas” já existentes, entram “em desconformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia” e até conflituam com os “direitos já reconhecidos no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados”, chegando ao ponto de ao tentar “inovar” acabar por “desvirtuar” o trabalho já existente.
José Magalhães: “ERC não pode fazer apenas o business as usual“
À VISÃO, o deputado socialista José Magalhães destacou que “o articulado esteve em debate um ano e que, mesmo assim, não há memória dos que agora vêm contestar a lei tenham colocados questões em cima da mesa”.
“O trabalho que fizemos foi levar em conta o trabalho da União Europeia, de 5 de dezembro de 2018, sobre a necessidade de práticas de autorregulação. Foi participado, ou pelo menos participou quem tinha interesse e queria contribuir para uma solução. Agora, entendo que, para muitos, é mais importante discutir questões relativas à Champions do que sobre as fake news“, admitiu, criticando a postura da ERC durante o último ano.
Para Magalhães, “a ERC tem de alterar os seus métodos de trabalho, aplicar a Constituição e não pode fazer o business as usual [expressão em inglês: mais do mesmo como de costume]”. “A ERC viu as suas competências revistas em 2005, e neste momento até pode fiscalizar sites de partilhas de vídeos”, defendeu, acusando ainda o Conselho Superior do Ministério Público de ter feito “um juízo politico que não lhe compete”.
“As pessoas podem continuar a ter as opiniões que querem, dormir tranquilamente, porque é sagrada a liberdade de opinião. Nem eu, nem a deputada Inês Sousa Real [PAN] somos revivalistas e andamos aqui a resgatar tiques fascistas”, rebateu, explicando que o Estado não vai fiscalizar conteúdos, antes patrocinar a criação de mecanismos de fact-checking por parte, “por exemplo, de órgãos de comunicação social”. “Se a VISÃO quiser implementar um desses mecanismos, será apoiada porque o objetivo é que o setor privado seja estimulado a fazê-lo”, acrescentou.
Já em relação às vozes críticas, comentadores que classifica de “ciberanarquistas”, o socialista especialista em ciberespaço é lacónico: “Alguém imagina que os opinion makers possam ser objeto de um ato sancionatório da ERC?”. “Durmam descansados e não de precisam rasgar as vestes em bandos, em proteção das obras de António Barreto, porque a Lei da Imprensa continuará a ser respeitada”, concluiu.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
Como e quando começou a elaboração desta Carta?
O PS foi o primeiro partido a entregar o seu projeto, em julho de 2020. Seguiu-se o PAN, já em setembro do ano passado. Só a partir daí se iniciaram audições e recolha de pareceres. A votação final foi já em abril deste ano.
E como votaram os partidos?
Numa primeira votação na generalidade, a 2 de outubro de 2020, antes de os projetos baixarem à Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, estiveram a favor o PS, PAN e a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira. As outras bancadas e a deputada não inscrita Cristina Rodrigues abstiveram-se. Já o Chega e o Iniciativa Liberal votaram contra. Depois, a 8 de abril de 2021, na votação final global, todos estiveram de acordo, à exceção do PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal, que se abstiveram.
No que consiste esta Carta?
São 21 princípios, que abrangem a vida do cidadão no ciberespaço. Inclui direitos que vão do “direito ao esquecimento“ ao direito à proteção contra geolocalização abusiva. Mas também deveres, principalmente por parte do Estado, de “promover a criação de uma tarifa social de acesso à Internet”, para quem é economicamente vulnerável, e implementar o tal artigo 6º., onde se estabelecem as armas contra a desinformação e as fake news.
Houve outras propostas no passado para estabelecer estas regras e princípios?
Sim, do deputado do PS José Magalhães, especialista nestes temas, em maio de 2019. Na altura, esteve na ordem do dia dois dos princípios, que consistiam no direito a desligar o telemóvel e o de não ser contactado por email pela entidade patronal, nas horas e em dias de descanso. Também tinha como objetivo substituir a autoregulação de plataformas, como o Facebook ou Youtube, e submete-las a regras de regulação por parte do Estado. A iniciativa, Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital, acabou por caducar, antes das eleições legislativas de outubro de 2019.
Há mais países com uma Carta de Direitos como esta?
No Brasil, Estados Unidos, Filipinas, Itália Nova Zelândia e Reino Unido já existe ou está em preparação. Muitos textos estão a ir beber inspiração ao “Marco Civil da Internet”, a legislação brasileira sobre o uso da Internet. A de Espanha leva já uns bons meses à frente da portuguesa, e lá a direita colocou a lei debaixo de fogo. António Costa deixou claro que gostaria, até ao final da Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, a 30 de junho, que a Carta nacional pudesse ter réplicas por parte de outros Estados-membros.
Mas a União Europeia não tem nenhuma recomendação feita sobre esta matéria?
Tem, e é nela que a legislação portuguesa foi beber inspiração. No final de 2018, quando um presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, era profícuo a twittar fake news, e no Brasil o então candidato presidencial Jair Messias Bolsonaro montara uma campanha baseada em desinformação, disseminada por grupos no WhatsApp, a União Europeia publicou um Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, onde já constavam algumas estratégias de combate àqueles fenómenos vividos no continente americano. Há menos de uma semana, a própria Comissão Europeia mostrou vontade de reforçar o seu Código de Conduta no combate à desinformação, tendo publicado diversas recomendações. Os gigantes tecnológicos como a Google ou o Facebook subscreveram o apelo e vão colaborar nesse trabalho, tendo até ao outono que apresentar propostas.
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