Fabricantes de componentes para automóveis preocupados com o futuro: "A indústria está a mudar... e a Europa anda distraída"

“O que estamos a viver não é uma crise, é uma transição que vai transformar profundamente a indústria automóvel e a própria economia europeia”. O alerta é do presidente da AFIA - Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel, José Couto, na véspera do arranque do 12º Encontro da Indústria Automóvel que reúne líderes do sector, compradores internacionais, decisores políticos e especialistas para discutir os desafios e oportunidades da fileira “num momento de transformação global” entre terça e quinta-feira, em Vila Nova de Gaia.
Para José Couto, esta transição vai “muito além da mudança de motorização”, da combustão para o motor elétrico ou outras soluções como o hidrogénio: “Temos novos atores, novas formas de mobilidade, novos impactos ambientais, novas relações comerciais. O desafio é para lá do automóvel”, afirma.
O essencial é “garantir que a indústria portuguesa continua a ser fornecedora de quem lidera o mercado, quer produza motor a combustão, elétrico ou outro. E para isso não nos podemos atrasar. Quem for mais rápida nesta transição ganha vantagem”, assume.
E num sector em que “os contratos de investimento têm ciclos mínimos de três anos, é fundamental planear a longo prazo, pensar à frente. Não nos limitarmos a reagir”, defende o dirigente associativo que vê na recente crise na cadeia de fornecimento da indústria automóvel devido à escassez de chips, com os problemas entre os Países Baixos e a China a ditarem a suspensão das exportações da Nexperia, “o reflexo de uma Europa distraída e lenta a reagir”.
“Durante anos desindustrializamos e entregamos competitividade à concorrência internacional. O resultado é uma Europa mais débil, dependente, sem soluções de curto prazo”, resume, no momento em que 2.500 dos 3.300 trabalhadores da Bosch Car Multimedia Portugal, em Braga, ficam em lay-off devido à falta desses chips e várias empresas na Europa estão a equacionar paragens parciais ou segmentadas de produção até porque “linhas intermitentes podem custar mais do que uma paragem temporária total”.
Impactos indiretos, mas reais
“Basta duas ou três empresas pararem por falta de componentes, para toda a cadeia ser afetada. Mesmo quem não usa diretamente essas peças é condicionado se as construtoras tiverem de interromper a produção ou as empresas para onde enviam os seus componentes pararem”, sublinha. É verdade que os impactos em Portugal “são sobretudo indiretos, mas são reais”.
“As empresas estão a fazer o que podem, mas precisamos de políticas públicas fortes, nacionais e europeias, para mantermos a posição competitiva”, afirma.
Com a transição tecnológica e geopolítica em curso, o aviso é claro: a Europa já não pode dar-se ao luxo de estar distraída. Assim, a AFIA defende uma intervenção “rápida e concertada” da Comissão Europeia “para substituir fornecedores, reconstruir capacidade industrial e reduzir a dependência estratégica de alguns fornecedores”. E defende uma mudança de fundo na política industrial comunitária: “A Europa criou 11 mil regulamentos para a indústria automóvel em cinco anos. Vivemos numa camisa de forças regulatória impossível de gerir”, critica.
Apesar das dificuldades, a fileira mantém dimensão e relevância: Portugal tem 360 empresas que deverão faturar 14,2 mil milhões de euros em 2025, ligeiramente abaixo dos 14,4 mil milhões do ano passado, antecipa. No emprego, o momento também é de quebra, de 63 mil postos de trabalho em 2024 para 62 mil no fecho de 2025.
Isto, depois de um ciclo de investimento de 4,5 mil milhões nas empresas do sector nos últimos cinco anos, ou de 7,3 mil milhões desde 2015, indica. “O esforço tem sido enorme, mas é insuficiente face ao que se exige para o futuro”, comenta.
Num momento em que “a procura de automóveis está em quebra, a quota das viaturas chinesas, mais competitivas em preço, nas novas matrículas na União Europeia está a aumentar e a produção de viaturas na Europa cai 11%, é fundamental reagir rapidamente, ou perdemos mercado e poder competitivo”, sustenta José Couto.
Custo da mão de obra sobe 27%
No esforço para garantir o futuro pós-transição, o presidente da AFIA destaca a digitalização, a inteligência artificial e a qualificação dos recursos humanos como “áreas chave para Portugal”, consciente de que “estamos a falar de investimentos pesados e de retorno demorado”.
“Só o custo de mão de obra já subiu 27% entre 2019 e 2025 porque há intensidade tecnológica, o nível de qualificação dos trabalhadores está a aumentar e precisamos de trabalhadores com muito mais qualificação técnica. Não estou a dizer que isso é mau. Estou apenas a exemplificar as mudanças em curso. Sabemos que só com qualidade podemos ser relevantes e competitivos na Europa e no mundo”, precisa José Couto. Mas a supercomputação e a inteligência artificial também são indispensáveis.
No âmbito das mudanças a implementar, o 12.º Encontro da Indústria Automóvel não esquece a transição de capacidade de produção para a indústria da defesa.“A Europa precisa de qualificar novos fornecedores e construtores neste domínio. O setor automóvel português tem condições para acompanhar esse desafio. Temos I&D, sistemas de informação robustos e seguros, linhas de produção modernas. Mas é preciso investir e aprender”, destaca Couto sobre esta aposta estratégica.“Parte da capacidade produtiva que ficará disponível com a redução da produção automóvel pode ser redirecionada para “setores emergentes vários, da defesa à mobilidade suave”, acrescenta.
Cluster ibérico em construção
Outra linha de ação passa pelas sinergias com Espanha, o maior cliente da indústria lusa de componentes, com uma quota a rondar os 30% das exportações lusas. É essa a razão que levou a AFIA a preparar a assinatura de um protocolo com a Sernauto, associação homóloga espanhola, para reforçar o ecossistema automóvel ibérico. “Espanha é o segundo maior produtor europeu de viaturas, e Portugal fornece 36% do que ali se monta. Temos problemas comuns e sinergias evidentes para explorar”, explica.
“Temos de perceber que se Espanha ganhar uma ou duas fábricas de automóveis, isso será é bom também para Portugal. Temos de pensar o espaço ibérico como um cluster conjunto”, defende.
E sobre o momento atual do sector, comenta com pragmatismo: “As empresas estão a fazer o que podem, mas precisamos de políticas públicas fortes, nacionais e europeias, para mantermos a posição competitiva”.
Depois de anos a bater recordes e da travagem a fundo sentida em 2024, as exportações da indústria portuguesa de componentes fecharam agosto a cair 3,3% face aos primeiros 8 meses do ano passado, nos 7.900 milhões de euros, com o mês de agosto a travar 9,9% e a registar o pior desempenho desde 2015. As razões da quebra, diz a AFIA, são várias, da redução da procura nos principais mercados europeus ao abrandamento económico, com a retração do consumo e a instabilidade geopolítica, a par da diferença de preços entre os veículos elétricos fabricados na Europa e os automóveis importados e do baixo ritmo de investimento em infraestruturas de carregamento.
“Estes números confirmam a fragilidade do setor perante um contexto internacional instável e de forte concorrência. A quebra de quase 10% em agosto é preocupante e deve ser lida como um alerta. Apesar de mercados como a Roménia (+37,5%) e Marrocos (+28,2%) darem sinais muito positivos, a dependência excessiva da Europa deixa-nos vulneráveis”, afirma o presidente da AFIA sobre um sector que tem nas exportações diretas 85% das vendas e representa 5% do PIB, 8,7% do emprego, 11,5% do valor acrescentado bruto e 13,5% do investimento da indústria transformadora, valendo 14.9% das exportações nacionais de bens transacionáveis.
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