Quanto já perderam os professores por causa do tempo de serviço congelado? "Dava-me para pagar a casa, a eletricidade e as telecomunicações"
Com os seis anos, seis meses e 23 dias de tempo de serviço congelado, a maioria de professores que estão nesta situação estão posicionados dois escalões abaixo daquele em que deveriam estar. Há docentes em que a diferença salarial entre o valor ilíquido que recebe e o que devia receber é de quase mil euros. No dia em que os sindicatos se voltam a sentar à mesa com o Governo para discutir o assunto, fomos conhecer a história de três professoras que estão a perder centenas de euros todos os meses
Anabela Fialho passou mais de metade da vida nas salas de aula como professora de Português. Tem 63 anos de vida e 35 de serviço. Respondeu “sim” à vocação de sempre, quando muitos dos seus colegas de juventude decidiram seguir outros caminhos.
“Se pudesse voltar atrás, não seria professora. Na altura em que tive de decidir, era tão fácil ir para qualquer curso. Tenho outros colegas que foram para Engenharia, foram para Medicina, foram para Economia, ou não estudaram e arranjaram negócios… e estão muito melhor na vida do que eu”, lamenta.
“É de dinheiro que estamos a falar. Quer se queira, quer não, isso conta. Eu não tenho vergonha de dizer que o dinheiro é uma parte importante. Não há mal nenhum em reclamar aumentos salariais, quando eles são justos”, esclarece, em entrevista telefónica à CNN Portugal.
Hoje, vê-se à beira da reforma, “que nunca mais chega”, e preocupada com o futuro. Os sucessivos congelamentos da carreira docente, o tempo que esteve à espera entre escalões na progressão da carreira, por causa de quotas e vagas, fazem-na olhar para trás e ver que não compensou e olhar para o futuro e temer o que lá vem.
“Não é só o dinheiro que tenho perdido ao longo destes anos. Isso vai interferir também com os valores das reformas e preocupa-me que, quando chegar à plena terceira idade e a precisar de apoios sociais, que a sociedade terá para me oferecer ou não, eu possa não ter dinheiro para os pagar. O que vai ser de mim?”, questiona.
Anabela sente “desalento e revolta”, quando olha para a tabela salarial da carreira docente e percebe que poderia estar agora no topo da carreira, a ganhar mensalmente 3.613,16 euros ilíquidos (2.256,25 euros líquidos) e está estagnada no oitavo escalão a ganhar 2.919,83 euros ‘brutos’ (1.937,46 euros ‘limpos’). É uma diferença de quase 700 euros ilíquidos (mais de 300 líquidos) que recebe mensalmente.
“Dava-me para, mais coisa menos coisa, pagar a mensalidade da casa, a eletricidade e as telecomunicações”, contabiliza.
São quase 10 mil euros, em termos ilíquidos, que perde todos os anos. Se os multiplicarmos pelos quatro anos que se mantém em cada escalão (embora os sindicatos não reclamem retroativos nas reuniões com o Ministério da Educação Ciência e Inovação (MECI)), só nos últimos quatro anos – tempo em que esteve no 8º escalão – perdeu 40 mil euros.
“Não sou feliz na escola”
Anabela Fialho está longe de ser caso único. Num corpo docente envelhecido, nem precisa de sair da Escola Secundária do Pinhal Novo, onde dá aulas de Português a alunos dos 10º e 11º anos, para encontrar casos semelhantes ao seu entre os colegas de profissão: "Tenho aqui colegas com 34 anos de serviço que ainda estão no 7º escalão e deviam estar no 10º. São cerca de 950 euros 'brutos' de diferença todos os meses".
Também por isso, hesita quando lhe perguntamos se é feliz na escola. Depois de alguns segundos, responde: “Tenho de ser sincera, não é? Na verdade, não sou feliz na escola. Anseio pela reforma. Estou cansada. Mais do que cansada, estrou exausta”.
Aproveita para reclamar uma reforma mais cedo para os professores, argumentando que a “profissão é muito exigente”: “Temos de lidar diariamente com um público muito exigente e muitas vezes contrariado”.
“Sinto que muitas vezes já não correspondo como o fazia há 10 anos. Isso deprime-me. Sinto muitas vezes que me faltam as palavras, que me falta uma ligação, que me falta um raciocínio… Eu reconheço as minhas falhas e acabo por brincar com os meus alunos com a situação. Eles próprios me ajudam. Mas não é agradável. Não é agradável para mim, nem vantajoso para os alunos”, explica.
Diferença de três escalões
O desalento de Anabela estende-se às gerações anteriores de docentes. Ana Rosa Roma é professora de Inglês e Alemão. Tem 54 anos e 27 anos de serviço. Está posicionada no 5º escalão (a contar entrar no 6º ainda este mês) e devia estar no 8º escalão, se o tempo de serviço congelado já estivesse contabilizado. Ganha 2.304,07 euros ilíquidos. Devia ganhar 2.919,16 euros. É uma diferença de cerca de 600 euros ‘brutos’ que “davam para pagar a prestação da casa”.
“Quando olho para estes números, sinto uma grande injustiça. Se compararmos com outras carreiras similares, vemos profissionais mais bem tratados. Vemos pessoas a terem ajudas de custo quando estão deslocados, por exemplo”, compara.
“Os professores vão fazendo. Temos o tal espírito missionário. Vamos fazendo, custe-nos o que que custar. E custou-nos isto: a progressão na carreira, valor de salário que não recebemos, horário que trabalhamos e não é contabilizado”, lamenta.
Ana Rosa diz que, como os colegas, se sente “estagnada na profissão”: “Não tenho progressão. Vai-me sendo sempre vedado. Seja por quotas, por contingências da avaliação. Não se justifica um professor avaliado de excelente, não ter excelente, por causa das quotas ou por causa da falta de transparência na avaliação docente”.
Injustiça a dobrar
José Feliciano Costa é secretário-geral adjunto da Federação Nacional de Professores (Fenprof), mas é também professor. Dá aulas de Geografia ao 3º ciclo, no Agrupamento de Escolas José Afonso, em Alhos Vedros. Aos 60 anos de vida e 31 de serviço, está no 6º escalão, a ganhar 2.399,80 euros ilíquidos por mês (1.710,63 euros líquidos). Devia estar no 9º escalão, a auferir 3.320 euros ilíquidos (2.144,54 euros líquidos). É uma diferença de mais de 900 euros ilíquidos (quase 450 euros líquidos).
No caso familiar deste dirigente salarial, o prejuízo é a dobrar. A mulher também é professora. “O caso da minha mulher é igualmente paradigmático. Tem 54 anos, 30 anos de serviço e passou agora para o 6º escalão. Aufere 2.399,80 euros ilíquidos por mês. Devia estar no 9º escalão, a auferir 3.320,22”, revela.
Juntos, José Feliciano Costa e a mulher recebem menos 1.800 euros por mês em termos ilíquidos. “É dinheiro. Tenho uma filha a estudar na Universidade, em Lisboa. Mesmo se eu pensar nos valores líquidos, dava para fazer face às despesas com a faculdade da minha filha, ao acréscimo significativo nos juros do crédito à habitação…. Podia juntar mais dinheiro, para ter uma reforma mais tranquila e mais descansada. Não vivo desconfortável, mas permitia mais umas avarias”, contabiliza.
Como Anabela Fialho, é com o futuro dos docentes que se preocupa José Costa Feliciano: “A maioria destes colegas, são professores com 50 e tal anos. Professores que saíram agora no meio da carreira. Chegarão, contas feitas por alto, ao topo da carreira com 66 anos. Alguns com 70, se cá quiserem e conseguirem cá ficar até aos 70. Uma parte significativa da carreira foi feita em escalões baixos e isso vai ter implicações na carreira contributiva para efeitos de cálculo da aposentação”.
“Isso até me preocupa mais, porque a velhice é um período de maior fragilidade e o valor que ficar de reforma é o que fica. Não vai haver grandes aumentos depois de reformados”, nota.
Mais do que 6, 6, 23
A Fenprof lançou, em setembro do ano passado, um simulador que permite aos professores ter a noção concreta dos valores que estão a perder. Mas a ferramenta vai além dos 6 anos, 6 meses e 23 dias que têm andado nas bocas dos portugueses.
“O simulador faz a contagem integral do tempo de serviço. Não faz só a contagem do tempo congelado. Tem em conta também os períodos que os docentes perderam em transição de carreira e o tempo que perderam na lista de espera na transição entre escalões por falta de vagas”, exemplifica José Feliciano Costa.
“Nalguns professores, o tempo integral é quase o dobro dos 6 anos, 6 meses e 23 dias”, sublinha o dirigente sindical.
“Para chegar ao topo da carreira, em condições normais, um professor demora 34 anos. Mas 50% dos professores ficam um ano à espera de passagem do 4º para o 5º escalão e 70% ficam um, dois ou três anos à espera do 6º para o 7º. Ter na avaliação de desempenho docente ‘muito bom’ implica reduzir seis meses no escalão seguinte e ‘excelente’ um ano. Mas em cada ciclo de avaliação só 25% dos professores podem ter ‘muito bom’ e 5% ‘excelente’. Ou seja, chegar ao topo, para poucos pode dar 32 ou 33 anos, mas para muitos (a maioria) precisaria de 35 a 37 para lá chegar. Isto sem congelamentos e perda de tempo nas transições”, explica.
Vítima do congelamento e de um erro administrativo
Pelo simulador da Fenprof, Sandra Lourenço, professora de Matemática, com 27 anos de serviço completos, devia estar no 8º escalão a ganhar 2919,83 euros ilíquidos (1980,24 euros líquidos). Está no 4º escalão, a ganhar menos cerca de 750 euros ‘brutos’, vítima do congelamento e também de um erro administrativo que a manteve no 2º escalão entre 2010 (quando se deu o primeiro congelamento) e 2018, quando aconteceu o primeiro descongelamento.
“Devia mudar do 2º para o 3º a 31 de dezembro de 2010, quando se deu o congelamento. Nos serviços administrativos da escola onde estava na altura, tinham a minha mudança de escalão para 1 de janeiro de 2011. Como descobri o engano só em dezembro, já não me foi permitido fazer a subida de escalão nessa altura. Foram oito anos congelada no 2º escalão”, lamenta.
A escola onde estava na altura e as sucessivas escolas por onde foi passando admitiram o erro, chegou a iniciar os procedimentos judiciais para resolver a situação, “mas só me deparava com nãos”. A falta de dinheiro e de energia para gastar num processo judicial fizeram-na desistir.
“Nessa fase, desmotivei um pouco. Mas, na realidade, ensinar é o que eu gosto de fazer. Estou nesta profissão por amor”, admite.
“Hoje sinto-me injustiçada. Fiz sempre tudo direitinho. Nunca fiz o meu trabalho de forma irresponsável. E depois por causa do congelamento e de um erro do qual eu não fui responsável, estou a receber muito menos dinheiro do que deveria e que me faz falta”, revela.
“Já era para ter uma vida mais folgada”
A diferença entre o valor que recebe e aquele que deveria receber, diz, daria para fazer face aos gastos com a filha que está a estudar em Coimbra, a mais de 200 quilómetros de distância da casa dos pais, no Pinhal Novo.
“Tento nem pensar muito nisto. Porque cada vez que penso fico deprimida. Tenho conseguido fazer face, porque corto noutras coisas. Tenho outra filha e tenho de pensar nela também e quero proporcionar-lhe o mesmo que estou a proporcionar à irmã. Faço face a estas despesas, mas à custa de muitos sacrifícios, como nunca ir almoçar fora, nunca ir jantar fora, os passeios são poucos, as férias são sempre tudo muito curtinho… Nesta fase da vida, com 27 anos de serviço, já era para ter uma vida mais folgada”, lamenta.
Pedro Barreiros, há um ano à frente da outra federação sindical da Educação, a FNE (Federação Nacional da Educação), sublinha que “a maioria dos professores estão posicionados dois escalões abaixo daquilo que deviam estar”. “Cada escalão tem, em média uma diferença de cerca de 120/130 euros líquidos por mês. Ao fim de um ano, vezes 14 meses, são quase 1.700 euros. Esse valor multiplicado pelos quase sete anos que temos congelados é muito dinheiro”, refere.
Contudo, o dirigente sindical volta a sublinhar que “os professores não pedem retroativos”. “Pedimos é a contagem de todo o tempo de serviço, para que os professores possam ser colocados no escalão em que deviam estar e possam começar a auferir o mais rapidamente possível do valor que deviam auferir”, acrescenta Pedro Barreiros.
Ponto da situação das negociações
A FNE será precisamente a primeira estrutura sindical a sentar-se à mesa com a equipa do MECI, para discutir a recuperação dos 6 anos, 6 meses e 23 dias que ainda permanecem congelados. Os sindicatos já tiveram duas reuniões com o Governo para discutir este assunto. Na última, a 13 de maio, o Governo propôs uma reposição faseada a cinco anos, 25% em cada um dos primeiros dois anos, 20% no terceiro e 15% nos dois últimos.
Aproximando-se das reivindicações dos professores noutros aspetos, por exemplo quanto aos efeitos do “acelerador” aprovado pelo anterior executivo, o ministro Fernando Alexandre disse esperar uma aproximação por parte dos sindicatos que, logo após as reuniões, reconheceram avanços, mas disseram ser insuficientes.
Fenprof e FNE enviaram, na última quinta-feira ao Ministério novas contrapropostas, onde fazem algumas cedências, mas insistem nos prazos que defendem desde o início do processo negocial.
A Fenprof, por um lado, mantém a devolução do tempo de serviço a uma média anual de 33% ao longo de três anos, à data de 01 de julho.
Já a FNE, que começou por propor 30% em 2024, 30% em 2025, 20% em 2026 e os últimos 20% em 2027, aproximou-se da posição do Governo ao alterar a sua proposta para a contabilização anual de 25%, mas mantém o prazo de quatro anos.
À semelhança da Fenprof, também a FNE começou por defender que a recuperação do tempo serviço produzisse efeitos à data de 01 de julho, mas na nova proposta aceita que o processo se inicie apenas a 01 de setembro, mas deve produzir efeitos a 31 de julho nos anos subsequentes.
Inicialmente apontada como uma linha vermelha, as duas organizações sindicais admitem também a revogação do diploma que implementou mecanismos para acelerar a progressão na carreira, o chamado “acelerador”, desde que o MECI mantenha os compromissos assumidos na segunda-feira.
Querem, em concreto, a garantia de vaga para efeitos de progressão aos 5.º e 7.º escalões durante o período de recuperação, bem como a garantia de que o tempo recuperado no âmbito do decreto-lei não será subtraído aos seis anos, seis meses e 23 dias.
Nas várias propostas apresentadas desde o início do processo negocial, Ministério e federações sindicais mantêm-se, no entanto, irredutíveis, uma vez que a tutela insiste que a recuperação do tempo de serviço será apenas para efeitos de progressão na carreira.
Fenprof e FNE, por sua vez, continuam a defender mecanismos de compensação para os docentes que não vão recuperar todo o tempo de serviço congelado, por se encontrarem já no topo da carreira ou por se terem, entretanto, aposentado.
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