O Governo só diz a verdade se lhe perguntarem se está a mentir: a cultura de falsidade, que é o que isto é, corrói a democracia
DESPUDOR E DESESPERO
POR SEBASTIÃO BUGALHO
A autoridade política do Governo foi obliterada pelo próprio em menos de uma semana. Muito simplesmente, já não existe. Foi-se. Esfumou-se, evaporada por uma TAP que queima. Três ministros viram a sua palavra ser sucessivamente desmentida, quando não os seus desmentidos expostos como mentira.
Mariana Vieira da Silva, que a 19 de abril admitira estar “em causa um parecer jurídico” para no dia seguinte ouvir Fernando Medina desmentir a existência de qualquer “parecer”, veio culpar o léxico pela baralhação. “É uma questão puramente semântica. Utilizei ‘parecer jurídico’ como podia ter utilizado ‘apoio’ jurídico”, justificou. Moral da história: foi o país que, cruelmente, não percebeu Mariana Vieira da Silva.
De forma confrangedora, a ministra foi ainda mais longe e propôs um exercício de retrospetiva. “Se o deputado me tivesse perguntado a seguir se existia ou não existia um parecer formal, eu teria respondido que não”, jura a ministra, que tinha acabado de confirmar que o parecer (que não existia, mas pode existir) existia.
Confuso, não é? Compreende-se. Quando a verdade é mentira e a mentira acaba por ser verdade, alternando sem cessar até ser impossível distinguir uma da outra, torna-se difícil acompanhar. Vieira da Silva veio confirmar a normalização de uma prática que não é nova nesta legislatura, não deixando de ser grave. O Governo só diz a verdade se lhe perguntarem se está a mentir, isto é, tudo o que diz é suscetível de dúvida, merecedor de suspeita e eventualmente falso.
Mariana não é a única devota à dissimulação. Fernando Medina, que a 17 março desmentia que o seu Ministério tivesse procurado a justa causa dos despedimentos da CEO e do chairman da TAP depois de os anunciar, viu a comissão de inquérito confirmar que havia feito precisamente isso.
Há 40 dias, Medina dizia que “é falso que o Governo estivesse à procura das razões que justificam a justa causa para as demissões após o anúncio da decisão”. Esta semana, a CPI confirmou que todos os procedimentos para proteger juridicamente a demissão são posteriores ao seu anúncio. Pelo caminho, o ministro fez queixa no regulador contra o jornal que havia noticiado isso mesmo. Hoje, como se nada fosse, comentou os resultados económicos da zona-euro. Já o PS considera “crime” os deputados da oposição denunciarem as inverdades do seu Governo que, pela sua vontade, permaneceriam confidenciais até caírem no esquecimento.
Mas há mais e há pior. João Galamba, que a 6 de abril desvalorizara a reunião entre o seu ministério e a CEO da TAP como algo “comum”, cuja iniciativa partira de Christine Ourmières-Widener e que servira apenas para “partilha de informação”, foi afinal o promotor do encontro em que se combinaram as perguntas e respetivas respostas que a gestora francesa daria à Assembleia da República. Galamba, que havia responsabilizado o gabinete de uma colega pelo agendamento da reunião (“os Assuntos Parlamentares”), vê-se assim na posição de ter tentado subverter trabalhos parlamentares, mentido sobre isso e procurado passar as suas culpas para outro Ministério. Como é que se mantém em funções seria a questão mais natural do mundo, não estivéssemos nós em circunstâncias politicamente paranormais.
A cultura de falsidade, que é o que isto verdadeiramente é, corrói tanto a democracia quanto a orgânica do governo. Mentira a mentira, inverdade a inverdade, desmentido a desmentido, o Executivo desintegra-se até ao estado de descredibilização. Como é claro para qualquer observador minimamente isento, um Governo não pode manter-se quando a sua porta-voz, o seu ministro das Finanças e o responsável pela privatização mais relevante da legislatura são sistematicamente desmentidos pelas suas próprias ações. Num espetáculo de despudor e desespero, o Partido Socialista clama pela maioria, que já descartou, e pelo Chega, que só alimentou. Mas nada disso impede a realidade de ser o que é. Isto acabou. Até à remodelação, à dissolução ou à demissão, a maioria não governará. Rastejará. E foi ela que se pôs no chão.
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