Das últimas vezes que Eugénia Fernandes, 54 anos, transpôs os portões abertos da antiga escola, a Afonso Domingues, em Marvila, prometeu a si mesma que seria realmente desta a última vez. O ditado diz para não voltarmos ao lugar onde já fomos felizes, mas Eugénia acaba sempre por quebrar a promessa. “Parece que ainda nos vejo ali, às meninas, sentadas a apanhar sol”, aponta para um dos campos de futebol da escola, abandonada há 14 anos por conta de uma obra polémica e antiga: a promessa de um comboio de alta velocidade, o TGV.
No dia em que a encontramos, muitos outros ex-alunos percorriam os corredores onde em tempos brincaram e estudaram. “Aqui era o PBX! Aqui era onde a malta via as misérias do fim do período!”, grita o antigo estudante Fernando Antunes.
Não é só saudade que eles sentem, é também perda: a escola que os viu crescer agora nada mais é do que um antro de abandono, com salas vazias, reduzidas a destroços e a pó. Apenas sobrevivem objetos perdidos de quem ali encontrou teto – um abrigo improvisado para quem mora na rua – nos últimos anos.
Que velha história contam estas paredes que deixaram de fazer parte dos planos da cidade? E porque está abandonada há tantos anos, à espera de projetos que nunca aconteceram?
O fim da “Universidade de Xabregas”
A Escola Industrial Afonso Domingues foi fundada em 1884 e mudou-se para esta morada em 1956. Chegou a ser conhecida como “a universidade de Xabregas” graças aos seus cursos industriais, muito frequentados pelos filhos dos mestres operários de Xabregas.
Em 2010, fechava portas. A ordem foi do Ministério da Educação, do mesmo governo socialista que a transformou num projecto falhado de "integração" das classes desfavorecidas, agora sob a tutela de Isabel Alçada, mas a razão do fecho não era educativa: os terrenos eram necessários para a construção da terceira travessia sobre o Tejo, que ligaria Chelas ao Barreiro. E, sobretudo, para o novo TGV cujo plano não avançou, até agora…
Também havia um razão educativa: aparentemente o número de alunos era reduzido. No ano letivo de 2009/2010, a escola, com capacidade para 850 alunos, fora frequentada apenas por 290 (160 em cursos de educação e formação e 130 em cursos profissionais). Ou seja, não ia fazer muita falta.
No ano anterior à sua desativação, tinham-se realizado investimentos significativos nas infraestruturas, com a instalação de quadros interativos, novos computadores e rede de Internet wireless. Mas não se conseguiu travar o fecho.
Na altura, uma professora da escola disse ao jornal Público:
“‘A ESAD tem muitos professores no topo da carreira, a receber ordenados maiores, e poucos alunos. É uma escola cara para o Estado’. A docente acredita ter sido essa a razão principal para a extinção. ‘O que o Governo não percebe, lamenta, é que ‘as turmas eram reduzidas de propósito, porque são alunos complicados.’”
Entretanto, em 2013, e já depois da suspensão do projeto do TGV, o Ministério da Educação comunicava à RTP:
“Não existe qualquer necessidade, ponderada a atual rede escolar, de reativar a escola. Está presentemente a ser estudada a (re)utilização das instalações da escola por uma entidade pública.”
Em 2015, o Público dava conta de que o então presidente da Junta da Freguesia do Beato, Hugo Xambre Pereira, contactara o Ministério da Educação para que as instalações pudessem ser cedidas aos Bombeiros do Beato. Ter-lhe-á sido dito que a escola fora disponibilizada à Direção-Geral do Tesouro e Finanças e que o próximo inquilino poderia ser o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (conhecido SEF).
Na mesma notícia, o antigo presidente da Junta de Freguesia de Marvila, Belarmino Silva, dizia: “Puseram o carro à frente dos bois (…) A travessia nem daqui por 30 anos está feita.”
Quase 14 anos depois, a escola continua abandonada. Um lugar abandonado numa cidade de que tanto precisa.
Os próprios alunos contam ter recorrido à Assembleia Municipal para que a escola fosse preservada, mas os seus esforços nunca surtiram efeito, dizem. E também dizem que nunca foram notificados de nenhum projeto.
Entretanto, falou-se ainda na possibilidade de o edifício integrar um corredor verde entre Chelas e a zona ribeirinha, uma ideia que terá sido anunciada pelo antigo vereador do Urbanismo e Reabilitação Urbana Manuel Salgado e relembrada pelo CDS-PP através de um requerimento à Assembleia Municipal, já em 2020.
“Há aqui lobbies, interesses instalados. Esta é uma zona privilegiada, com vista para o Tejo”, aventa Alda Moreira, uma outra ex-aluna, que desconfia que a inação em relação ao edifício ao longo destes anos se tenha devido a interesses imobiliários. Luís Rainho, também ex-aluno, acredita que nada terá avançado por causa da Casa de São Vicente, uma instituição de utilidade pública que fica nas traseiras da escola.
TGV avança finalmente: e a Escola Secundária Afonso Domingues?
2024 arrancou com a notícia do o lançamento do concurso público para a construção da linha de alta velocidade Lisboa/Porto. A ideia adiada desde os anos 90, anunciada por vários governos, até à suspensão em 2011 pelo governo de Passos Coelho. Aprovado o TGV, lançou-se o concurso internacional para o primeiro troço da linha de alta velocidade que ligará o Porto a Oiã, no distrito de Aveiro.
Com os planos anunciados, qual será o futuro da Escola Secundária Afonso Domingues?
Para os ex-alunos, esta é uma questão pessoal: apesar das ruínas, temem que em breve tenham apenas memórias da escola. E isso mesmo é-lhes confirmado por uma jovem sem abrigo que ali pernoita: há duas semanas, a Polícia Municipal terá visitado o edifício, anunciando que aqueles que ali dormiam teriam de sair, pois o edifício seria demolido.
“É uma palermice, já agora, com tanta gente desalojada, podia criar-se aqui um centro de alojamento”, diz a jovem.
Esta ideia foi, de facto, discutida no ano passado, quando a Câmara Municipal de Lisboa anunciou que pretendia deslocar o Centro de Alojamento de Emergência Municipal, com planos para sair do Quartel de Santa Bárbara, em Arroios para esta escola. A Escola, aliás, foi cedida em 2022 pelo governo, através do IHRU, para implementação do Programa BNAUT – Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário.
De acordo com a CML, foi mesmo feito um projeto de implementação de um pólo de desenvolvimento social, destinado a vários serviços sociais. Porém, diz a CML, foram as próprias IP – Infraestruturas de Portugal, que emitiram um “parecer desfavorável à manutenção do edificado da Escola Afonso Domingues.”
E o projeto ficou parado.
A IP não respondeu aos pedidos de esclarecimento da Mensagem em relação à escola e eventual demolição. Já o presidente da Junta de Freguesia de Marvila, José António Videira, diz desconhecer o futuro deste edifício: “Não tenho mais novidades, nunca fui contactado por nenhum organismo público sobre esta questão.” Sabia do projeto do pólo de desenvolvimento social, mas há anos que espera pela travessia. “A obra continua a não ser edificada, mas os acessos para a futura ponte estão lá.”
A escola de escritores, desportistas e filhos de operários
A Escola Afonso Domingues, batizada com o nome do arquiteto quatrocentista que projetara o Convento da Batalha, foi fundada no dia 24 de novembro de 1884. Antes de se instalar no edifício hoje abandonado, na Quinta das Veigas, passou por uma casa na Calçada do Grilo, onde se ensinavam cursos diurnos de Desenho Elementar e cursos noturnos de Desenho Industrial. Também pelo rés-do-chão do Palacete de D. Gonçalo Pereira da Silva e Meneses, na Calçada da Cruz da Pedra. E por um edifício anexo ao Asilo Dona Maria Pia, nas traseiras do Convento de Madre Deus.
No início do século XX, era uma escola profissional mais que estabelecida, com o Curso de Desenho Elementar, de Arquitetura e de Máquinas, e com oficinas de Pintura, Fundição, Carpintaria e Serralharia.
Um vídeo nos arquivos da RTP permite imaginar como seria o passado nesta escola: nele, jovens da Mocidade Portuguesa soldam peças e manobram máquinas, vestidos a rigor com os seus fatos macaco.
Por aqui passaram personalidades como o escritor José Saramago e vários desportistas como o treinador de futebol Paulo Sérgio ou o ex-jogador de andebol Carlos Resende.
Com o 25 de Abril, instituiu-se aqui o ensino do 7.º, 8.º e 9.º anos, que ramificava no Ensino Liceal e no Ensino Técnico.
Os anos passaram e a escola foi ganhando novas valências. Num vídeo da Câmara Municipal de Lisboa sobre a Escola Afonso Domingues, as professoras Manuela Nunes e Adelaide Rodrigues recordam “uma escola de referência”, com os cursos técnicos pelos quais sempre foi conhecida, aos quais se juntaram mais tarde cursos profissionais.
Eugénia Fernandes conta como entrou em Mecânica à boleia de um namorado, mas acabaria por trocar as máquinas pelo Desporto, a sua grande paixão. A escola ficaria, aliás, conhecida pela forte componente desportista. “Eu passava muito tempo nos jogos inter-escolas!”, comenta um outro aluno, Alípio Videira, que chegou mesmo a dar aulas de Educação Física na escola.
No vídeo da CML, as professoras relembram também os alunos, muitos deles vindos dos arredores de Lisboa, chegando de comboio de Alenquer, de Alhandra, Vila Franca. Para eles, a Afonso Domingues era como “uma escola de segunda oportunidade”.
“Alunos que eram excluídos sucessivamente das escolas e que, no ensino regular, não conseguiriam acabar o 9.º ano, encontravam aqui na escola e nos professores um acolhimento que não encontravam em mais lado nenhum”, diz Adelaide Rodrigues.
Esta é uma ideia que é confirmada pelos ex-alunos: “Para muitos, a escola era a família que os miúdos não tinham em casa”, conta Eugénia. Fernando acrescenta: “Havia um espírito de união, de corpo”.
Elsa Reis, uma outra aluna, tenta explicar estes vínculos que se formaram entre todos: “Não sei se é por a escola estar paredes meias com bairros típicos de Lisboa, tinha aquela vertente do bairrismo…”.
Os alunos desfiam memórias: recordam como os caloiros eram recebidos, submetidos a uma “praxe” que incluía passagens por um corredor por todos conhecido como o “corredor da morte”, lembram-se das brincadeiras nas escadarias e dos esconderijos onde começavam os primeiros namoricos.
“Esta escola está marcada indelevelmente nos nossos corações”, conclui Fernando.
E há quem ainda recorde os tempos anteriores à democracia, como Paulo Casimiro, cujos pais foram chamados para uma reunião na escola com a PIDE, que suspeitava da “união entre os alunos” quando ele e os amigos fugiram para as praias da Costa de Caparica.
Os reencontros e as lutas da comunidade escolar
Muitos destes ex-alunos não desistiram da luta pela defesa da sua escola. Alda gostava mesmo de ver o edifício classificado, e até mesmo transformado num museu das escolas industriais. E os os alunos denunciam a falta de cuidado com a documentação da escola.
Em 2020, foi publicado um Inventário Preliminar de Séries da Escola Industrial Afonso Domingues, a partir do espólio documental recebido pela Secretaria-Geral da Educação e Ciência. Porém, num dos encontros que realizam ocasionalmente pela escola, os ex-alunos encontraram, na velha sala de arquivos, fichas de alunos, provas de avaliação…
Folhas e folhas abandonadas e a ganhar pó.
Nestes reencontros na velha escola, prevalece a tristeza, mas são também estes momentos que permitem recuperar a velha união. Foi aliás num desses passeios clandestinos que Eugénia Fernandes reencontrou Fernando Antunes, que é agora o seu parceiro. Mas não o reencontrou só a ele, reencontrou também Alípio Videira, o seu “protetor”.
Foi Alípio quem a defendeu contra um grupo de rapazes nos seus primeiros dias na Afonso Domingues. E é temendo que esta realmente seja a última vez na escola que Eugénia se vira para o seu velho amigo Alípio e diz: “Fomos aqui felizes, não fomos?”.
Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
A escola de Lisboa que o TGV fechou há 14 anos (amensagem.pt)
É triste ver como uma escola que já foi considerada "Universidade" pela sua excelência ter tido este caminho após me ter dado tanto. Sócrates, muito "obrigado" pelas políticas sociais que nos nivelam por baixo, pelas auto-estradas de 4 mil milhões que nos vão custar mais de 30 mil milhões, pelo TGV que este governo continua a querer fazer no mesmo modelo das auto-estradas do Sócrates, e pela Troika que obrigou o Passos Coelho a cortar salários e pensões.
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