A Procuradora-Geral da República, Lucília Gago JOSÉ SENA GOULÃO
Foi o terramoto que mergulhou Portugal numa crise política. A investigação — que mais tarde ganhou o nome de Operação Influencer —, fez cair um governo maioritário, levou à marcação de eleições antecipadas e deixou a política nacional em suspenso.
Pelo meio tem corrido muita tinta sobre o processo. Fala-se em PGR, DCIAP, arguidos, indiciamento, instrução. Para que não se perca, eis como funciona o Ministério Público (o órgão responsável pela acusação) em seis perguntas e respostas.
O que é o Ministério Público?
O Ministério Público (frequentemente referido pela abreviatura MP) é um órgão integrado na função judicial do Estado, mas cuja magistratura funciona paralela e independentemente da magistratura judicial (ou seja, juízes do Supremo Tribunal de Justiça, juízes das relações e juízes de direito).
Nos termos da Lei n.º 68/2019, “goza de autonomia em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local”. Ou seja, este pode investigar, instruir e acusar sem qualquer interferência dos outros poderes, nomeadamente do poder político.
Segundo os seus Estatutos, o MP “representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar, participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exerce a ação penal orientado pelo princípio da legalidade e defende a legalidade democrática”.
Por outras palavras, traduz o próprio MP no site dedicado a explicar o seu funcionamento, “é uma instituição que tem por finalidade garantir o direito à igualdade e a igualdade perante o Direito, bem como o rigoroso cumprimento das leis à luz dos princípios democráticos”.
Neste contexto, o Ministério Público tem atribuídas funções em áreas muito variadas. Estas podem ser tão variadas como “defender a legalidade democrática, defender os direitos e interesses das crianças e jovens, exercer o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social, defender os interesses coletivos e difusos, defender a independência dos tribunais e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis”.
Processos como a Operação Influencer surgem no âmbito das competências do MP zelar pela investigação e prevenção da criminalidade violenta, altamente organizada ou de especial complexidade.
Como se forma um processo?
Há várias formas através das quais um processo pode ser aberto. Uma delas é pela apresentação de uma queixa, diretamente ao Ministério Público ou junto das autoridades policiais (que têm a obrigação de comunicar a denúncia ao MP). A queixa não é contudo necessária em certos casos - nomeadamente em crimes públicos (ex. homicídio, violência doméstica). Noutros casos, o processo pode ser aberto depois de a comunicação social divulgar informações sobre atos ilegais.
Tendo o MP tomado conhecimento do facto, dita a lei que deve ser aberto um processo penal, como os dois em que a Operação Influencer foi partida para evitar um megaprocesso. Dá-se assim início à fase de inquérito. Segundo a definição do Glossário da Ordem dos Advogados, esta “compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime”, determinar quem o terá praticado, e quais as responsabilidades de cada um destes “agentes” e ainda “descobrir e recolher provas” que possam consubstanciar a decisão sobre a acusação.
Como previsto no Artigo 58.º do Código de Processo Penal, é constituída como arguida qualquer pessoa contra quem decorre um inquérito e “em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime”.
A pessoa em causa será obrigatoriamente constituída arguida caso:
- tenha de prestar “declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal”;
- lhe sejam aplicadas “uma medida de coação ou de garantia patrimonial”;
- seja detida;
- seja levantado auto de notícia que aponte uma pessoa como agente de um crime. Segundo o Explicador “Direitos e Deveres” da Fundação Francisco Manuel dos Santos, este documento é elaborado pelas autoridades policiais que presenciaram um crime e trata-se de um “relato descritivo” da ocorrência que, entre outros elementos, pode identificar os autores do crime.
Nesta fase do processo dá-se também o indiciamento, que o Glossário da Ordem do Advogados define como “um ato formal, realizado eventualmente durante o inquérito policial, quando a autoridade policial se convencer de que determinada pessoa é a autora da infração penal”. Isto é, quando as pessoas são indiciadas, apontadas como potenciais autoras de crime.
É nesta fase que se encontra a Operação Influencer, após terem sido tornadas públicas as suspeitas que levaram à queda do governo.
O que acontece depois da investigação?
Terminada a investigação, o MP irá analisar todos os indícios recolhidos e decidir se quer efetivamente avançar para julgamento. Se sim, os arguidos são formalmente acusados e o caso avança para tribunal. Em crimes com molduras penais menos gravosas, o caso pode ser suspenso provisoriamente. Se não estiverem reunidas provas suficientes, o caso é arquivado.
É possível que seja solicitada uma fase de instrução. Esta fase processual facultativa visa comprovar judicialmente a decisão de avançar (ou não) para julgamento. Ou seja, os indícios recolhidos são analisados por um juiz que irá decidir se estes são suficientes para o processo avançar para julgamento.
Importa sublinhar que a acusação, como define o Glossário da Ordem dos Advogados, é uma “peça processual apresentada pelo Ministério Público, no âmbito da qual alguém é acusado de ter cometido crime(s) pelos quais deverá ser julgado”. Ou seja, não se tratam de factos provados, mas sim suspeitas que recaem sob os arguidos, que o MP tentará provar como verdadeiras e a defesa tentará refutar.
Compete ao juiz ou júri que está a analisar a matéria submetida a julgamento chegar a uma conclusão sobre a acusação. A essa decisão proferida damos o nome de veredicto. Contudo, ainda durante o julgamento, caso o próprio MP chegue à conclusão que não há provas suficientes para condenar, poderá pedir a absolvição.
Quais as funções do MP em todo este processo?
Na área penal, o MP desempenha vários papéis em diferentes momentos. Em primeiro lugar, compete ao MP receber as denúncias e abrir o processo. Iniciando-se a fase de inquérito, o MP é o responsável pela investigação. Embora a recolha de provas seja feita por agentes policiais, compete ao MP orientar a polícia quanto às diligências a serem realizadas.
Concluída a investigação, o MP deverá analisar todas as provas recolhidas para decidir se a acusação deve ou não avançar. Caso o processo siga para tribunal, compete ao MP defender e sustentar a acusação, nomeadamente apresentando as provas recolhidas contra o arguido.
Findo o julgamento, compete ainda ao MP recorrer da decisão do tribunal caso não concorde com o veredicto.
Qual a estrutura do MP?
O MP caracteriza-se pela sua estrutura vertical e hierárquica. A Procuradoria-Geral da República (PGR) é o órgão superior, sendo presidida pela Procuradora-Geral da República (cargo ocupado desde 2018 por Lucília Gago), a quem competem funções de direção, fiscalização, representação e execução. Trata-se da “chefe máxima [do MP], com poderes de direção, hierarquia e de intervenção processual sobre os demais magistrados”, explica a página oficial do Ministério Público.
Na dependência da Procuradoria-Geral da República funcionam:
- Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP);
- Departamento das Tecnologias e Sistemas de Informação;
- Departamento de Cooperação Judiciária e Relações Internacionais;
- Departamento Central de Contencioso do Estado e Interesses Coletivos e Difusos;
- Núcleo de Assessoria Técnica.
Destes, o mais mediático (e o envolvido na Operação Influencer) é o DCIAP. Trata-se, de acordo com a definição no site oficial, de “um órgão de coordenação e de direção da investigação e de prevenção da criminalidade violenta, económico-financeira altamente organizada ou de especial complexidade”.
Abaixo da PGR, estão as Procuradorias-Gerais Regionais (que são quatro, em Lisboa, Porto, Coimbra e Évora), as Procuradorias da República de Comarca (num total de 23) e as Procuradorias da República Administrativas e Fiscais (quatro, em Lisboa, Porto, Coimbra e Loulé).
Dentro desta estrutura, e sob a autoridade da Procuradora-Geral da República, são magistrados do MP o Vice-Procurador-Geral da República (atualmente Carlos Adérito da Silva Teixeira), os procuradores-gerais-adjuntos e os procuradores da República.
Acrescenta a página oficial do MP que “são também magistrados do Ministério Público magistrados na qualidade de procuradores europeus delegados e o representante de Portugal na EUROJUST e respetivos adjunto e assistente.”
Quão autónomo é o MP?
A muito sublinhada autonomia do MP tem duas valências. A autonomia externa prende-se com o facto de este atuar sem interferência de outros poderes. A excepção é quando o MP atua como advogado do Estado. O MP dispõe também de autonomia administrativa e financeira, tendo nomeadamente um orçamento próprio.
Mas a autonomia do MP é também interna. Apesar do MP ter uma hierarquia, esta não colide com o princípio da autonomia funcional. Na prática, os magistrados são autónomos dentro do próprio Ministério Público.
Esta autonomia, explica o MP, está assente em quatro pilares fundamentais:
- vinculação ao cumprimento da Lei e da Constituição;
- sujeição às directivas, ordens e instruções previstas no Estatuto;
- salvaguarda da sua consciência;
- estabilidade de colocação (os magistrados não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei).
Esta autonomia funcional tem sido alvo de críticas e reflexões no rescaldo da Operação Influencer.
Miguel Sousa Tavares, por exemplo, critica no seu artigo de opinião publicado no semanário a 17 de novembro, defende “o fim da liberdade de qualquer procurador poder fazer o que quiser sem dar satisfações a ninguém internamente, de não responder perante ninguém hierarquicamente, de não haver um adulto na sala a dirigir e a controlar o que ele anda a fazer, mesmo que seja a lançar fantásticas operações que têm como efeito prático e único derrubar um Governo eleito por uma maioria absoluta de portugueses. E que no final, e ao contrário do que sucede com os magistrados judiciais, quando o escândalo se torna insustentável, só responda disciplinarmente, quando responde, perante um Conselho Superior do Ministério Público, onde os seus pares estão em maioria”.
O mesmo foi defendido por Ana Gomes no seu espaço de comentário na SIC (que pode ouvir aqui em podcast). “Não é acabar com a autonomia ou independência, é ter que prestar contas”.
No caso português existe ainda outra questão que tem sido levantada nesta matéria. Ao contrário do que acontece noutros países em que o Procurador-Geral da República é eleito, em Portugal este é nomeado pelo Presidente da República mediante a proposta do primeiro-ministro. Sendo uma nomeação política, levantam-se questões relativamente à sua independência.
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