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"Se isto escala, toda a gente perde". Trump abandonou acordo sobre o IRC. Preços vão subir e Europa vai sofrer



 A ideia era ter uma distribuição mais justa da riqueza gerada pelas maiores empresas do mundo. A ideia de Donald Trump é diferente


Primeiro os iPhones e os iPads ficam mais caros, depois os preços dos Teslas sobem a pique e no fim até temos de pagar mais por serviços como o Spotify ou a Netflix. As tarifas apareceram como o grande problema que os Estados Unidos da América (EUA) apresentam à União Europeia, mas a discreta saída de um acordo global que previa a taxação de grandes multinacionais pode ter um efeito mais nefasto a longo prazo.


Entre as várias ordens executivas que assinou na noite de 20 de janeiro, dia em que tomou posse como 47.º presidente dos Estados Unidos, Donald Trump decidiu retirar o país do acordo político global feito em sede da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), e que previa uma taxa mínima de 15% para todas as empresas que gerem volumes de negócios anuais iguais ou superiores a 750 milhões de euros.


A ideia é uma distribuição mais justa da riqueza gerada, enquanto se impede que grandes empresas consigam encontrar formas de elisão fiscal e assim obter vantagens competitivas no mercado. Era o que acontecia na República da Irlanda, onde a Apple tinha uma estrutura empresarial para conseguir operar perto do mercado europeu, mas sem pagar as taxas que outros Estados-membros da União Europeia exigiam.


Dublin dava um regime fiscal mais vantajoso à gigante norte-americana, mas Bruxelas fartou-se de casos destes - tanto que a Apple foi condenada a pagar uma multa de 13 mil milhões de euros em compensação pelos impostos que não pagou em solo comunitário - e, impulsionada por França e Alemanha, decidiu criar um imposto universal.


João Ochôa, professor e investigador do Instituto de Direito Fiscal Austríaco e Internacional da Universidade de Viena, explica à CNN Portugal que nenhuma das empresas que já tenha negócios físicos na Europa, como tem a Apple, por exemplo, vai deixar o solo europeu. Não só porque seria demasiado dispendioso, mas porque o imposto acabaria por se aplicar na mesma, já que a lógica de compensação funciona sempre - "é a beleza deste sistema", diz o fiscalista. Na prática, e num exercício hipotético, se a Apple pagar 15% de impostos em Portugal e pagar apenas 10% nos Estados Unidos, a empresa terá de distribuir o dinheiro que falta pagar nos Estados Unidos para chegar aos 15% a todos os países onde é obrigada a cumprir as regras. A questão é que a Apple pode sair de Portugal, claro, mas não vai sair também do Canadá, do Japão, Austrália ou de todos os outros países que ratificaram o acordo.


Em vez de ver as empresas saírem, o que a Europa pode ver acontecer é um aumento dos preços por duas vias: as multinacionais vão pressionar com uma subida do preço final, justificando isso com a subida dos impostos; a União Europeia pode aumentar as taxas dos produtos norte-americanos numa lógica retaliatória que daria origem a uma guerra comercial com consequências imprevisíveis, sobretudo para uma economia europeia que está longe de estar no seu auge e depende em muito do consumo norte-americano. Para já esta decisão parece apenas uma ameaça, no que João Ochôa vê como uma tentativa de Donald Trump de prorrogar o regime atual, no qual os Estados Unidos ainda não entraram totalmente, o que ainda dá liberdade às suas empresas.


“A Europa fica um bocado num impasse”, admite o especialista, lembrando que Portugal foi dos últimos países a transpor a diretiva europeia para a lei nacional, o que se explica pela crise política que derrubou o Governo de António Costa, mas também por uma “postura passiva” dos políticos portugueses.


Emprego, custos... Europa à espera para saber


Sem a possibilidade real de que as empresas norte-americanas deixem todas os países que assinaram este acordo, Donald Trump pode virar-se para dentro e pegar numa lei que visa proteger as empresas norte-americanas.


É a secção 891 do título 26 do Código dos Estados Unidos - que tem o título "duplicar as taxas de impostos de cidadãos ou empresas de certos países estrangeiros -, e que o agora presidente mencionou no comunicado intitulado Política Comercial América Primeiro. “O secretário do Tesouro, em consulta com o secretário do Comércio e o representante comercial dos Estados Unidos, investigará se um país estrangeiro aplica a cidadãos ou empresas dos Estados Unidos impostos discriminatórios ou extraterritoriais nos termos da secção 891 do título 26 do Código dos Estados Unidos”, pode ler-se, numa frase que quase pode ser vista como uma ameaça semelhante a "todos os que nos taxarem vão ser taxados a dobrar".


João Ochôa diz que isto significa que o presidente dos Estados Unidos pode, caso entenda que existe aquele tipo de violação na lógica dos interesses norte-americanos, ordenar a aplicação de taxas a dobrar às empresas dos países que a administração Trump entenda que estão a minar os interesses nacionais.


O mesmo especialista refere que isso seria uma “retaliação brutal às empresas europeias”, que poderiam ter de passar a pagar o dobro, de 15% para 30%, nos Estados Unidos. Num cenário de União Europeia em parco crescimento (0,9% em 2024, 1,5% em 2025 e 1,8% em 2026, de acordo com as previsões, que ainda são piores para a Zona Euro), o efeito que este tipo de medida teria é devastador.


Pensemos no caso alemão, a maior economia da União Europeia, mas que segue há dois anos em recessão e com uma grave crise automóvel, mas não só. De acordo com o gabinete de estatísticas alemão, os Estados Unidos foram o principal destino das exportações alemãs em novembro de 2024, o último de que há dados discriminados. Um volume de negócios que significou 14 mil milhões de euros num só mês, e do qual grande parte foram automóveis de marcas como a Volkswagen ou a BMW.


De acordo com os dados mais recentes da principal fabricante de automóveis alemã, os primeiros três trimestres de 2024 representaram um crescimento de 1,5% da marca no mercado norte-americano. Um volume que se traduz na entrega de 769 mil veículos de um total de 11,8% de todas as exportações. E mesmo assim a marca está em crise, com milhares de despedimentos e uma grande ameaça ao seu futuro. Agora, olhando para Portugal, pense-se no que seria de empresas como a Autoeuropa, que dependem da Volkswagen para continuarem a existir.


“Não deixa de ser assustador. Claro que isto vai encarecer a operação europeia nos Estados Unidos caso vá para a frente. Aí os preços aumentam nas empresas norte-americanas e, como consequência, nas empresas europeias nos EUA”, alerta João Ochôa.


“Se isto escala, toda a gente perde. Há redução do comércio, no final do dia perdem os americanos, que pagam mais para importar, perdem os europeus, que pagam mais para exportar, perdem as empresas, porque são mais taxadas”, lamenta João Ochôa.


Ato contínuo, e num cenário pessimista, mas altamente possível, as empresas europeias deixam de vender tanto, gerando menos volume de negócios e criando ainda mais dificuldade para conseguirem crescer. Isso leva a ainda mais despedimentos e a uma crise anunciada na União Europeia a nível económico. A juntar a isso, e como o “consumidor sofre duas vezes”, passamos a pagar mais pelos produtos que os Estados Unidos comercializam por cá, numa lógica de pré-guerra fiscal, para lá da guerra comercial.


“A redução do mercado das empresas europeias nos Estados Unidos é expectável. Em termos de competitividade, os Estados Unidos passam a ser uma espécie de paraíso fiscal em que se aplica menos tributação que no resto do mundo, com a posição competitiva da Europa a ser prejudicada a médio prazo”, atira o professor universitário.


E, numa lógica mais futura, há ainda outra consequência: qualquer empresa que agora surja nos Estados Unidos vai ter grandes reticências em colocar-se na Europa, já que não quererá ser taxada à lei da OCDE.


Vamos tributar as multinacionais


A origem de tudo isto é a ideia da tributação da economia digital, com a OCDE a lançar, em 2013, a chamada erosão da base e transferência de lucros (conhecida por BEPS), que a União Europeia tenta implementar desde 2013, efetivando as suas intenções com o Digital Service Act (DST), de 2018, onde se procurou uma forma de taxar não apenas o rendimento, como era convencional, mas sim o volume de negócios.


Chegado à presidência norte-americana em 2017, Donald Trump não achou piada ao que os 27 estavam a tentar fazer, e começou logo a ameaçar diretamente a França, nomeadamente pela aplicação direta de tarifas sobre produtos como vinho e queijo.


Tentando chegar a um acordo, a OCDE baseou-se num entendimento político assente em dois pilares, sendo o segundo o mais relevante, e também aquele que Donald Trump coloca agora em causa.


Chegou-se à conclusão de que tem de continuar a ser o Estado de residência, onde está a casa-mãe da empresa, a ter jurisdição e a levar a maior fatia fiscal. Mas também se concluiu que era preciso partilhar esse “bolo” com o resto do mundo.


“[A OCDE] visava criar um imposto mínimo na legislação interna que se aplicasse às multinacionais, os tais 15%. No Pilar 2 olhamos para o grupo, vemos por um lado em que jurisdições se aplicam as regras do Pilar 2 e em que jurisdições há tributação abaixo de 15% (determinada de acordo com as regras criadas pela OCDE) e no caso de a tributação numa jurisdição estar abaixo dos 15% uma das jurisdições onde a multinacional tem atividade que tenha estas regras vai acabar por tributar”, refere João Ochôa.


Peguemos no caso da Meta, por exemplo, que opera Facebook, Instagram e Whatsapp. Caso uma daquelas empresas que estão debaixo do chapéu do conglomerado não venha a pagar impostos, a Meta passa a ter de os pagar nos vários países onde opera.


Se a Apple, que tem a sede na Califórnia, tiver depois uma empresa na Irlanda e uma subsidiária dessa segunda nos Países Baixos, os Países Baixos terão de olhar para as empresas da cadeia, por exemplo.


O regime que a OCDE quer aplicar, e que Portugal transpôs para a lei no fim de 2024, diz que os Países Baixos passam a receber tudo o que não for tributado na Irlanda. Ou seja, se a Apple pagar 10% nos Estados Unidos e 12,5% na Irlanda, terá de pagar os 15% nos Países Baixos e ainda distribuir o que não pagou nos outros países pelo regime neerlandês. Na prática, tudo o que não paga num país é distribuído em compensação por aqueles onde o regime é aplicado.


É a chamada Regra dos Lucros Insuficientemente Tributados (UTPR, na sigla original), e que “chateia Donald Trump”, como diz João Ochôa. É uma regra que permite que um país aumente os impostos a uma empresa caso essa empresa seja parte de uma empresa maior que pague menos que os 15% mínimos propostos pela OCDE. Os Países Baixos podiam, assim, aplicar mais impostos à subsidiária da Apple porque a Apple “mãe” não paga o que está estabelecido.


Uma regra que chateia Donald Trump, mas que até se inspirou numa ideia criada pelo republicano em 2017. Falamos do rendimento global intangível pouco tributado (os americanos chamam-lhe GILTI), e que é uma forma especial de os Estados Unidos calcularem quantos ganhos estrangeiros tem uma empresa norte-americana, para depois garantir que ela paga o mínimo de impostos possível.


“A Comissão Europeia andava há quase 20 anos a tentar criar um sistema de tributação europeu, um IRC europeu, e isto é uma coisa muito próxima disso. Houve uma dança de vetos entre Hungria e Polónia, mas quem andava a tentar pressionar os países da União Europeia a adotar o Pilar 2, além de França e Alemanha, era a secretária do Tesouro norte-americana, Janet Yellen (da administração Biden), que fez várias viagens à Hungria e Polónia, até que a União Europeia aprovou a regra”, explica João Ochôa.


Esta é, assim, mais uma reversão de Donald Trump ao que foi deixado pela administração anterior.


Nota: João Ochôa, professor assistente e investigador do global tax policy center do Instituto de Direito Fiscal Austríaco e Internacional da Universidade de economia e negócios de Viena (WU) falou a título pessoal e a sua opinião não vincula a universidade


"Se isto escala, toda a gente perde". Trump abandonou acordo sobre o IRC. Preços vão subir e Europa vai sofrer - CNN Portugal


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