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Condução autónoma: esta tecnologia portuguesa está a conquistar a Europa e quer provar que o que Elon Musk diz "é mentira"



 Ler um livro, conversar sem olhar para a estrada ou ver uma série são atividades impossíveis de fazer enquanto se conduz. Com o projeto THEIA, desenvolvido pela Universidade do Porto (UP) e pela Bosch Braga, o objetivo é entrar no carro e relaxar, sem a necessidade de prestar atenção permanente ao caminho. A ideia é tornar os veículos mais seguros na condução autónoma, através de tecnologias baseadas em inteligência artificial (IA) e sensores que permitem o automóvel tomar decisões consoante o ambiente envolvente.


“O Elon Musk diz muito que só com as câmaras se consegue ter condução autónoma, mas nós conseguimos mostrar categoricamente que isso é mentira, porque é preciso múltiplos sensores e mesmo com múltiplos sensores não é uma coisa trivial de se conseguir”, explica Rolando Martins, líder do projeto e professor de ciências computacionais na Faculdade de Engenharia da UP.


Para tornar a condução autónoma segura é imperativo que os sensores consigam substituir a visão humana, para que o automóvel reaja ao ambiente em redor e tome decisões, como abrandar ou desviar-se de obstáculos. Mas “não há uma tecnologia perfeita”, com cada uma a apresentar as suas limitações. No caso do projeto THEIA, os investigadores optaram pelos sensores LiDAR, existentes, por exemplo na consola de jogos Xbox. Este tipo de sensor cria uma espécie texto em 3D para traduzir o ambiente circundante.


“Nós vemos os sensores LiDAR já a serem aplicados em carros autónomos para tomar decisões. E aqui surge uma oportunidade com este projeto de analisar de que forma o impacto de ter sensores de LiDAR (com maior resolução, com maior número de pontos e com maior critério naquilo que consegue percecionar à volta do carro) pode influenciar a privacidade", explica Filipe Gonçalves, lead expert em perceção de condução autónoma da Bosch Portugal.


A privacidade foi uma das maiores preocupações, desde logo pela necessidade de criar uma infraestrutura capaz de armazenar os dados e que fosse resiliente a ataques. Além disso, este tipo de sensor consegue construir a perspetiva em 3D dos rostos que se encontram no ambiente circundante, por isso, é preciso salvaguardar a privacidade dos transeuntes, assim como da localização do carros e dados pessoais de quem se encontra no veículo.


A sofisticação dos sensores LiDAR permitiu ainda analisar de que forma poderiam ser úteis em situações adversas, como chuva, nevoeiro ou neve, que podem afetar negativamente a tomada de decisão do carro. Para Rolando Martins, esse foi o “grande desafio”, considerando que, “muitas vezes, descarta-se uma situação que nós designamos de edge cases, aqueles casos de exceção que normalmente não são vistos neste tipo de situações, mas que temos de ter em consideração, porque pode, muito provavelmente, acontecer no meio da estrada. E o algoritmo, se não tiver visto este tipo de situação, não sabe comportar-se”.


O projeto THEIA analisou o comportamento do carro em circunstâncias adversas e que tipo de alternativas poderiam ser aplicadas para que o sistema não decida erradamente. Filipe Gonçalves salienta ainda que “o sensor LiDAR é à base de feixes de transmissão e receção. E o que poderia acontecer é os sinais de trânsito serem refletidos", fazendo com que o sensor LiDAR estivesse a ver quase uma parede. Sinais como os placares luminosos informativos em autoestradas podiam ser interpretados como uma barreira, por isso é essencial complementar com câmaras ou radares para o automóvel avaliar a situação, identificar os obstáculos e tomar a decisão correta.


“A nossa intenção é que, quando nós desenvolvemos um algoritmo de IA, ele seja capaz de se adaptar às circunstâncias”, acrescenta, para que se um sensor, câmara ou radar falhar, o veículo não fique imobilizado e tome alguma decisão – quer seja manter a condução ou diminuir a performance.


Os investigadores salientam ainda que têm a “certeza absoluta” de que a condução autónoma será mais segura do que a tradicional, ao remover a “irracionalidade das decisões que vemos nas estradas”, além de potenciar a mobilidade.


“Há empresas como a Waymo e a Cruise, que em São Francisco já têm aqueles robotáxis, ou seja, os táxis andam literalmente a servir a população, e, por exemplo, se for uma população idosa, evitam até que eles usem um carro próprio e usem aquela infraestrutura de uma maneira muito mais económica e eficiente”, exemplifica Rolando Martins. Quando acontecer uma emergência numa cidade será possível criar um corredor desimpedido para os veículos de emergência, através do envio de alertas aos carros autónomos para evitarem aquela zona, são “soluções que atualmente nós não conseguimos ter”.


Filipe Gonçalves acredita que “não é uma questão de possibilidade, porque a tecnologia já existe, é mais saber de que forma nós o podemos fazer”. “Agora estamos numa fase de tentar otimizar os sistemas, ou seja, de conseguir executar este tipo de algoritmos, que já são complexos por si, e tentar comprimi-los ao máximo, ao ponto de depois conseguimos meter em qualquer tipo de dispositivo que tenha uma capacidade mais reduzida e que esteja disponível a toda a população”, diz.


O projeto, terminado em 2023, resultou num conjunto de patentes. A Bosch está a implementar a tecnologia desenvolvida pelo THEIA noutros países, ao cedê-la a marcas automóveis. Apesar do reconhecimento desta inovação na mobilidade, é ainda preciso evoluir mais no processo de decisão pelo automóvel. “Aí também conseguimos evoluir, mas não tanto como queríamos na primeira fase, porque é um projeto muito complexo, as coisas demoram mais tempo e os resultados não são tão imediatos”, diz Rolando Martins.


Com vontade de avançar ainda mais na área da segurança, os investigadores da UP e da Bosch submeteram outro projeto, o Atlas, focado no impacto social, no aumento da confiança do público e na incorporação de ética no algoritmo de IA. A submissão deste segundo passo “também dependeu muito do feedback, da avaliação do projeto THEIA, que foi positivo ao nível da discussão da tecnologia e da demonstração de resultados. [Entretanto] surgiu esta oportunidade de darmos quase como um reforço do projeto THEIA, tentando ir em particular às componentes que nós identificamos que poderiam ainda ser melhoradas”, recorda Filipe Gonçalves.


Um dos aspetos essenciais é que o processo de tomada de decisão seja o mais explicito possível. Rolando Martins salienta que nas “circunstâncias em que há um acidente iminente e não há uma solução para escapar do acidente, vai ser um processo de escolha: “Qual é a situação menos grave?”. Isso vai ter de ser explicado, por que motivo o algoritmo tomou uma decisão e não tomou outra”.


“Como estamos a falar de algoritmos muito complexos, nós quase que o vemos como uma caixa negra: sabemos o que está a entrar no algoritmo, sabemos o que está a sair do algoritmo, mas às vezes não sabemos o que está lá no meio. E é aqui que as tecnologias de explicabilidade acabam por auxiliar a dar um consenso no porquê da decisão, ou por que ele disse, por exemplo, que está aqui um carro e não um cão”, descreve o especialista da Bosch.


A ajuda imprescindível dos fundos europeus

Em 2018 o projeto THEIA foi submetido para ter acesso aos fundos do COMPETE 2020 no âmbito do Sistema de Incentivos à I&DT (investigação e desenvolvimento tecnológico) dos quais obteve 18 milhões, entre os quais 11 milhões provenientes do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER). “Era impossível [sem os fundos], estamos a falar de investimentos enormes, sem isso não haveria THEIA seguramente”, afirma Rolando Martins.


Durante o projeto houve também um investimento nas infraestruturas da UP e da Bosch, o que permitiu capacitar as próprias instituições com novo equipamento e recursos humanos. Agora “temos aqui capacidade para fazermos investigação e inteligência artificial porque, de outra maneira, é impossível”, assegura o docente da UP.


“Este projeto também é positivo para dar a experiência no sentido de saber em futuros projetos o que é necessário, o que é obrigatório ter, para termos uma melhor noção dos riscos associados, porque às vezes também estão transacionados de forma passiva quando não deveriam ser”, acrescenta Filipe Gonçalves.


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