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Ortografia (4): A Escrita e a Lei



 Desde meados do século doze, como o testemunham o ‘Pacto dos irmãos Pais’, a Notícia de Fiadores’, ou a da cantiga de escárnio ‘Ora faz host’o senhor de Navarra’, até 1911, os portugueses escreveram português sem necessidade nenhuma de tutela legal, acordo ou outra lei, que lhes dissesse como escrever a sua língua.


A ortografia da língua portuguesa, como vimos na coluna anterior, teve duas grandes fases, a fase fonética durante a Idade Média e a fase etimológica que começa a plantar as suas raízes com o Renascimento. O processo de amadurecimento progressivo pelo qual a escrita da língua portuguesa passou parece quase espontâneo na medida em que não se pode vislumbrar uma linha orientadora externa que predeterminasse o caminho a trilhar; a escrita do português foi-se acomodando, senão naturalmente, pelo menos com relativa naturalidade às circunstâncias históricas que foi atravessando. Esta evolução, que vai do aprender a representar os sons da língua que o povo fala na rua ao vesti-la com as cores da cultura clássica da qual ela, no final de contas, deriva, vai erigindo paulatinamente um modus scribendi, ou uma tradição ortográfica que no século de Eça, Camilo e Garrett estava já solidamente edificada. Não quer isto dizer que não existisse variação na forma de escrever, mai ou mae, pai ou pae, Paulo ou Paolo, entre outros exemplos, ficavam, mais ou menos, à vontade do freguês. Isto de maneira nenhuma representava a situação de caos, ou como se escrevia então, chaos ortográfico que muitas vezes se lê por aí atribuída a essa época. Quem escrevia tinha uma certa latitude dentro da qual podiam empregar os seus próprios critérios na forma como representavam a língua na escrita. Isto para nós, hoje em dia, pode parecer estranho, acostumados como estamos a regras ortográficas rígidas impostas por via legal. Não é que qualquer coisa fosse então aceite, nessessidade ou nessecidade seriam imediatamente reconhecidas como erros ortográficos, não porque o Estado assim o determinasse, mas porque a tradição ortográfica conhecida de todos conduzia naturalmente a essa conclusão.


As regras da ortografia portuguesa anteriores a 1911 foram-se construindo através da tradição e do uso. As tendências que marcavam a tradição ortográfica eram ditadas pela forma como escritores tais como Eça, Garrett, Camilo, entre tantos outros, escreviam o português e que servia de modelo ou exemplo para sociedade destes contemporânea. Com o aparecimento de casas editoriais e dos jornais, também estes passaram a influenciar a forma de como escrever. Além disso, existiam instituições, como, por exemplo, as universidades ou as academias, já para não falar do próprio Estado, que então comunicava com os seus cidadãos exclusivamente por meio da escrita, muito embora o Facebook ou o Twitter ainda não existissem, que também elas serviam de exemplo no que diz respeito a que tendências ortográficas seguir.


A existência de regras ortográficas, mais ou menos rígidas, obedece a uma necessidade objectiva. Como nós já vimos nesta coluna, toda a língua viva tem dentro de si variação, variação diatópica ou regional, variação diastrática ou social, variação diafásica ou de registo, já para não falar das variações de estilo. A escrita, tal como a gramática, tem de ser estável, congruente e lógica de modo a não comprometer o acto comunicativo; numa palavra, não podemos escrever como nos dê na real veneta. A questão está em quem tem tutela sobre a língua nacional? Quem tem o direito de determinar o que é correcto ou errado na forma como o povo escreve a sua língua?


Entre a necessidade de uma escrita ‘estável’ e a questão de a quem cabe fixar essa estabilidade existe um conflito. Em Portugal, essa questão nunca foi levantada, já que desde 1911 que se assume, pelo menos de forma implícita, que cabe ao Estado a tarefa de determinar o que está ortograficamente certo ou errado. Tal atitude está, aliás, conforme com o que, em geral, acontece no nosso país onde se aceitam com total naturalidade graus de interferência do Estado na vida dos cidadãos que em outras paragens seriam considerados absolutamente intoleráveis.



As Reformas Ortográficas


A reforma da ortografia de 1996 foi, de facto, contestada, mas o Estado português, na sua interpretação dos seus poderes, não sentiu necessidade nenhuma de se explicar e muito menos de corrigir a senda pela qual mais uma vez se decidiu enveredar. Essa senda é, para alguém tão cínico como o autor deste texto, a de ser subserviente, não do seu povo, mas de quase tudo que vem lá de fora. Lá fora é que é bom! A história dos acordos ortográficos em Portugal parece ser liderada por vontades alojadas fora das fronteiras do nosso pequeno rectângulo e que encontram cá na terra sempre alguém disposto a agradar.


A primeiríssima reforma ortográfica do português com valor oficial deu-se, não no Brasil, mas sim em Portugal e foi, aliás, bastante contestada do outro lado do Atlântico. No entanto, a reforma de 1911, segue-se e segue a batuta da reforma proposta pela Academia Brasileira das Letras de 1907 cujo objectivo, claramente exposto na sua declaração de intenções, era acabar com a escrita etimológica e adoptar em vez o princípio fonético. A reforma ortográfica de 1911, no entanto, não foi tão longe quanto a proposta pela academia brasileira e tentou, tanto quanto possível, manter um certo equilíbrio entre a origem etimológica da língua e a sua produção fonética na variedade padrão. Assim, para dar apenas um exemplo, o p-mudo desaparece na palavra ‘escripto’, porque este não tem qualquer função, mas mantém-se em ‘baptismo’ porque aí assinala a produção aberta da vogal a em posição átona.


Na reforma de 1911, foram sobretudo palavras de origem grega, como, por exemplo, psychologia, physica philosophia ou grammatica, as que mais sofreram das ânsias modernistas transatlânticas associadas à sempre entusiástica sanha republicana de alguns dos nossos, comparem-se com o resultado pós-acordo psicologia, física, filosofia e gramática. Esta reforma foi, na sua generalidade ou em pontos particulares, muitíssimo contestada na altura. Fernando Pessoa, que levou muito a peito o desaparecimento do ípsilon, sob a heteronímia de Bernardo Soares, compara-a, no Livro do Desassossego, a ‘um escarro directo que me enoja independentemente de quem o cusp[a].’


Não existia em 1995, ou nos anos anteriores a essa data, pelo menos que se saiba, um clamor do povo português que exigisse, a gritos pelas ruas, uma reforma da sua língua escrita, nem os autores portugueses iam todos os anos a pé em fila indiana a Fátima implorar pelo milagre ortográfico. Foi, uma vez mais, algo vindo de fora que determinou aquilo que nós hoje temos de aceitar como certo ou errado. A desculpa foi que uma pretensa uniformidade dos portugueses escritos pelo mundo fora tornaria os nossos escritores ‘bestsellers’ nos brasis e outras terras de linguajar lusitano. Como já referi aqui no passado, que se saiba os autores portugueses ainda não podem levar a vida de estrelas de Hollywood graças aos dividendos do estrelato internacional que a nova ortografia entretanto lhes proporcionou. Continuam à espera!


Apesar de algum alarido – o fogo de palha do costume– o dito cujo acordo lá vingou e os portugueses num misto do seu habitual laissez faire e do supiníssimo ‘cabe-ao-Estado’, as duas versões pós-revolucionários do velho ‘um-povo-de-brandos-costumes’ do ti’ António de Santa Comba, lá engoliram o xarope todo à colherada. E que xarope!, não há tosse que lhe resista. Ou se calhar até há, pelos vistos os angolanos já começaram a tossir outra vez.


Em Macau o xarope não chegou a ser receitado, fora escassas excepções, aqui escreve tudo a tossir. O problema do português em Macau é outro, mas o autor deste texto prefere passar silente quanto a essa matéria, não vá ser que alguém lhe dê um tiro quando este passar pela rua culpado de ter ferido as sensibilidades alheias.


 

A Reforma Ortográfica Alemã de 1996


Já os alemães são menos de tomar xaropes sem a devida receita médica. Em 1996, quando a Alemanha, a Áustria, a Suíça e o Liechtenstein assinaram um acordo ortográfico que pretendia simplificar e tornar mais lógicas algumas regras da ortografia do alemão, mal sabiam os membros do grupo de trabalho para a elaboração das novas regras o que p’ràí vinha!


A reforma ortográfica 1996 segue-se a uma discussão que já existia na sociedade alemã desde quase o fim da guerra. Em 1980, quando a Alemanha ainda estava dividida em duas, decidiu-se formar um grupo internacional de trabalho para discutir a reforma da ortografia. Este grupo publicou, em 1992, uma primeira proposta de reforma que, em 1993, foi escrutinada por 43 grupos de trabalho das quatro nações envolvidas no processo. Após a revisão de certos aspectos mais controversos, em 1994 a proposta para a revisão da ortografia alemã estava pronta para ser adoptada. Em Junho de 1996, os estados (Bundesländer) da Alemanha, a Áustria, a Suíça e o Liechtenstein decidiram que as novas regras entrariam em vigor em Agosto de 1998, com um período de transição até 2005.


Embora alguns ‘Länder’ da Alemanha tivessem decidido introduzir a reforma já no ano lectivo de 1996-97, a reforma encontrou grande oposição por parte do público em geral e de muitas instituições alemãs.


No mesmo ano da assinatura do acordo, durante a feira do Livro de Frankfurt, acreditada como a maior feira do livro do mundo, uma petição contra a implementação da reforma foi assinada por centenas de pessoas, entre elas alguns dos nomes mais sonantes do universo literário alemão, como, por exemplo, Günter Grass (1927-2015), que viria a ganhar o Nobel da Literatura em 1999. Seguiram-se várias iniciativas contra reforma, tanto a nível nacional, como a formação, em 1997, da ‘Associação para a ortografia e conservação da língua alemã’ que se descrevia a si própria com o epíteto de ‘Iniciativa contra a reforma ortográfica’ (Initiative gegen die Rechtschreibreform), ou mesmo a nível estadual, como o referendo popular com que, em Setembro de 1998, rejeitou a reforma no estado de Schleswig-Holstein. (O resultado do referendo viria a ser anulado posteriormente por votação no parlamento local).


Vários jornais e meios de comunicação também criticaram a reforma e alguns, entre os quais o Frankfurter Allgemeine Zeitung, um dos mais influentes jornais da Alemanha, recusou-se a usar a nova ortografia.


Como resultado de toda a comoção que a implementação do acordo ortográfico causou na sociedade alemã, em Junho de 1997, foi introduzida no parlamento federal alemão (Bundestag), uma moção multipartidária (BTDrucks 13/7028) que levou a uma audição pública de linguistas e juristas relativamente aos aspectos mais controversos do acordo. Em Março de 1998, por recomendação da Comissão dos Assuntos Jurídicos, o parlamento federal alemão passou a resolução BT 13/224, p. 20567 na qual, expressa a sua preocupação pelo ‘elevado grau de incerteza jurídica e linguística’ que a reforma havia causado na sociedade ao mesmo tempo que afirma que ‘a língua utilizada pelos cidadãos desenvolve-se de forma constante, progressiva e orgânica por meio de um acordo entre os falantes’; conclui o parlamento federal que, em última instância, ‘a língua pertence ao povo’ (Die Sprache gehört dem Volk).


Na verdade, o parlamento alemão decidiu não decidir nada e, em vez disso, incumbiu os ministros responsáveis pela implementação do acordo de, tendo em conta a opinião de diferentes quadrantes da sociedade alemã e trabalhando em conjunto com os vários estados do Estado federal, procurar alcançar um ‘consenso dentro da comunidade de falantes’ (Konsens in der Sprachgemeinschaft).


Dada a inacção do Estado, em Maio de 1998, 594 professores de língua e literatura alemãs apresentaram uma queixa no Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht) uma vez que a lei alemã permite que indivíduos apresentem queixas (Verfassungsbeschwerde) directamente ao tribunal constitucional sempre que considerem que os seus direitos constitucionais tenham sido violados. A fundamentação para esta queixa baseava-se na violação tanto dos direitos individuais (Persönlichkeitsrechts) dos filhos como do direito dos pais de participar activamente no processo educativo dos filhos, tal como é previsto pela lei alemã.


Esta queixa viria a ser rejeitada a 14 de Julho de 1998, quando o tribunal constitucional proferiu a sentença 1 BvR 1640/97, na qual declara que ‘o Estado não está constitucionalmente impedido de regulamentar a ortografia correcta da língua alemã para o ensino nas escolas. A constituição (Grundgesetz) também não contém uma proibição geral de intervenções criativas na ortografia’. A sentença que consta de apenas quatro pontos que mal enchem uma página, é seguida de 34 páginas com 169 parágrafos com as rações (Gründe) que fundamentam a rejeição da queixa.


Diz o parágrafo 122º dos fundamentos da sentença que ‘a constituição não contém qualquer proibição que considere a ortografia como um objecto fora do âmbito regulatório do Estado. Uma tal proibição não decorre do facto de o Estado não ter sido expressamente autorizado a regulamentar a ortografia. A constituição não se baseia no princípio de que cada medida tomada pelo Estado deva basear-se numa autorização constitucional. Pelo contrário, baseia-se na autoridade geral do Estado para agir no bem comum, ainda que [a constituição] lhe imponha certas restrições, tanto a nível formal como material. Nestas circunstâncias, a proibição da regulamentação [da ortografia] não pode resultar da falta de autorização constitucional, mas apenas dos limites constitucionais às decisões do Estado’. Na mesma linha, o parágrafo seguinte acrescenta que ‘a natureza da língua não significa que exista uma proibição absoluta de regulamentação. A suposição de que a língua ‘pertence’ ao povo não pode justificar uma tal proibição porque ‘pertencer’ não exprime uma atribuição no sentido jurídico, nem a tese subjacente ao pressuposto, se tivesse conteúdo jurídico, poderia impedir o envolvimento do Estado. O facto de um objecto não ‘pertencer’ ao Estado não impede o Estado de sujeitar a sua utilização a determinadas regras. Que a língua não emane do Estado e se desenvolva através do uso social, não impede a sua regulamentação por parte do Estado.’ Estes dois parágrafos lidam sobretudo com o ‘direito’ do Estado de agir sobre a ortografia; já o parágrafo 99º apresenta uma justificação para a interferência do Estado na configuração ortográfica da língua pois argumenta a resolução que, embora a língua preceda a existência do Estado, directrizes ortográficas são necessárias para que ‘os professores e os alunos saibam o que têm de ensinar e aprender’. A decisão do tribunal constitucional alemão centra-se sobretudo em problemas relacionados com o ensino porque foram essas as principais preocupações levantadas pela queixa dos professores de língua e literatura que assinaram a petição.


Estas considerações jurídicas poderiam talvez ser extrapoladas para o caso português já que também a constituição portuguesa não faz nenhuma menção a poderes do Estado em matéria de regulamentação da ortografia da língua. O artigo 9.º, na sua alínea f) apenas diz que é tarefa fundamental do Estado ‘assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa’.


O que está aqui em jogo não é, obviamente, qualquer proximidade linguística entre o português e o alemão, nem sequer semelhanças ou disparidades no processo de evolução ortográfica das duas línguas, mas sim o facto de que na Alemanha o tribunal constitucional alemão foi chamado a pronunciar-se acerca da legitimidade do Estado neste tipo de decisões e, em consequência, da legalidade das mesmas. A situação portuguesa só é comparável à alemã na medida em que, tal como no caso alemão, o Estado arrogou-se de um direito que prima facie podia não ser seu.


Até que ponto este exemplo de jurisprudência do tribunal alemão se pode estender ao caso português e, assim, justificar a intervenção do Estado na questão ortográfica esbarra com o problema da díspar situação histórica das duas línguas no que diz respeito ao desenvolvimento das suas respectivas ortografias e à relação desse mesmo desenvolvimento com o próprio Estado.


Até meados do século dezoito, a ortografia do alemão sofria de uma grande falta de uniformidade. Parte deste problema derivava do facto de que a língua falada também variava de região para região. A variação regional do alemão é muito diferente da do português na medida em que os dialectos, sobretudo do norte, denominados de baixo-alemão (Plattdeutsch), podem ser considerados línguas e são, em muitos caos, mais próximos do holandês do que do alemão e dos dialectos alemães, sobretudo, do sul da Alemanha.


A tradução da Bíblia por Lutero, o Novo Testamento em 1522 e o Velho em 1534, proporcionou o primeiro modelo ortográfico para um alemão padrão escrito, mas foi só nos finais do século dezoito que apareceria uma ortografia uniforme padrão para a língua alemã. É preciso ter em conta que a Alemanha, como país, até à formação do Império Alemão, em 1871, nunca tinha sido um Estado unificado como Portugal o foi desde a Idade Média. A formação do Estado alemão em 1871 exige a constituição de alemão padrão (Standardhochdeutsch) que sirva de língua oficial do Estado e que tenha uma ortografia uniforme. Assim, em 1876, o ministro prussiano da cultura reúne a primeira conferência sobre ortografia que, baseada nas propostas de Rudolf von Raumer (1815 to 1876), estabelece pela primeira vez as regras da ortografia prussiana e bávara do alemão, que viriam a ser compiladas, em 1880, por Konrad Duden (1829 to 1911) no seu dicionário ortográfico da língua alemã.


Mas a questão não ficou resolvida! Em 1901, uma segunda conferência teve de ser convocada porque os resultados da primeira não agradavam a toda a gente e assim começa a história das várias intervenções do Estado alemão na ortografia da sua língua.


As diferenças entre o caso português e o caso alemão são evidentes, a intervenção Estado na questão ortográfica alemã responde a uma necessidade sociopolítica objectiva. Poder-se-ia mesmo dizer que até à intervenção do Estado em 1876 não existia uma ortografia alemã. No caso do Português, quando em 1911, o estado decidiu intervir pela primeira vez na escrita da língua, a ortografia portuguesa estava bem estabelecida e de boa saúde. A intervenção política na ortografia portuguesa de então foi de natureza ideologia e não a resposta a um problema social evidente, ainda que a questão dos altos níveis de alfabetismo tenha sido evocada na altura. Tal como a reforma de 1996 não meteu mais massa no bolso dos nossos escritores, também a reforma de 1911 não diminuiu as taxas de analfabetismo, pelo contrário, dada a confusão que a primeira república trouxe consigo, o analfabetismo até subiu.


Outra diferença evidente é que, desde 1901, o Estado alemão presta atenção à sociedade e em consequência dessa sua postura, em 2004, os seus pontos mais controversos da reforma de 1996 foram reformados.


 

O Direito ao Erro?


A resolução do tribunal constitucional alemão estava, de certo modo, limitada aos termos da queixa original e, como tal, a maior parte dos seus 169 parágrafos lida com os problemas apresentados na queixa. Não obstante essa limitação, uma das conclusões interessantes da resolução do tribunal é a sugestão de que somente no ensino, e talvez nas instituições do Estado, embora o texto não faça referência a isso, é que o uso da nova ortografia é obrigatório. A resolução nunca o diz explicitamente, mas parece sugeri-lo; o parágrafo 155º diz mesmo que ‘a introdução da reforma ortográfica nas aulas escolares não afecta a liberdade económica de escolha das empresas em (…) decidir a favor ou contra a conversão dos seus produtos e processos empresariais para a nova ortografia.’ O facto de que jornais tão importantes como o Die Zeit, o Neue Zürcher Zeitung, o Süddeutsche Zeitung e até mesmo o Frankfurter Allgemeine Zeitung tenham decidido adoptar as suas próprias normas ortográficas confirmam essa interpretação.


 

À forma de epílogo


A verdade é que no caso alemão, a controvérsia e a pressão social deram frutos já que em 2004, ainda antes do fim do período de transição, a reforma foi revista e as questões mais polémicas resolvidas, senão todas, quase todas.


Cá na terra, o fado é outro; o Estado dá, o povo recebe.


Ainda houve por aí quem alimentasse esperanças de que o Grão-Comentador nacional, o que vive naquela casa cor-de-rosa em Belém, e que para o autor deste texto representa um dos melhores argumentos em favor do retorno de Portugal à monarquia, não porque, como opina D. Duarte na sua velhice, que Deus o guarde!, este se comporte como um rei se deveria comportar mas, por considerar que ser chefe de Estado deveria ser algo mais do que o avô cantigas da nação, fizesse algo, pelo menos em relação às partes mais contenciosas do acordo, mas nem para isso serviu. E agora que se encontra ocupado a com a escolha do novo arrendatário da casa cor-de-rosa, não parece que tenha tempo para estas bagatelas que só consomem esses desocupados que se dedicam a escrever ou a ler.


Não sei se ainda se lembram do filme ‘Mary Poppins’, de 1964, baseado numa série de livros da autora australiana Pamela Travers (1899 -1996), que conta a estória de uma ama seca com poderes mágicos capazes de animar a rígida educação vitoriana. As suas muitas lições vinham na forma de canções–não fosse este um filme dos anos sessenta e ainda por cima da Walt Disney–e entre estas estava a famosa cantilena ‘a spoonful of sugar makes the medicine go down’, ou seja, algo assim como ‘uma colher cheia de açúcar torna o medicamento mais fácil de se tomar’. Ora, ao contrário do que assistimos em Portugal, em que nem sequer foi preciso sujar a colher, aos alemães foram precisas bem mais do que uma colher cheia de açúcar para engolir a poção.


Ai, esses nossos brandos costumes…


Por Roberto Ceolin em:

Ortografia (4): A Escrita e a Lei – PONTO FINAL


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