O conceito de Estado falido, aplicado a países como Haiti, Somália e Síria, agora se lança sombriamente sobre o território venezuelano
Venezuela: Não faltam somente os bens de primeira necessidade nos supermercados da cidade, mas é difícil encontrar também dinheiro em espécie
Foi muito depressa. Não faz muito tempo, quando Hugo Chávez era vivo e comandava o país, o grande tema de debate entre cientistas políticos e observadores internacionais era se a Venezuela ainda podia ser considerada um Estado democrático, tamanha a interferência de Chávez e de seus seguidores nas instituições do país.
Hoje, o que se discute é se a Venezuela sequer ainda tem um Estado. O conceito de Estado falido, aplicado a países como Haiti, Somália e Síria, agora se lança sombriamente sobre o território venezuelano, onde estão as maiores reservas de petróleo do mundo, e que ficou conhecido no passado por ser uma alegre fábrica de misses e um paraíso para mergulhadores e turistas atraídos por sua formidável costa caribenha.
¿Que pasó?
A resposta é simples: um furacão chamado chavismo, cuja força destrutiva arrasou os setores produtivos — que nunca foram grande coisa, mas existiam —, aniquilou até mesmo a capacidade de extração da antes imponente PDVSA, a estatal do petróleo, e colocou a economia numa desordem que beira o caos. Isso fica claro para qualquer estrangeiro ou cidadão venezuelano em Caracas, a capital do país.
Não faltam somente os bens de primeira necessidade nos supermercados da cidade, mas é difícil encontrar também dinheiro em espécie, mesmo em meio a uma hiperinflação que deverá chegar a 720% neste ano. A situação desafia as leis da oferta e da procura, segundo as quais os preços só deveriam subir quando a moeda fosse abundante. Não é o que ocorre na Venezuela. Os preços sobem mesmo com a falta de dinheiro em espécie.
A situação social da população é ainda mais trágica do que a falta de produtos e de moeda. Em seu último informe, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, Luis Almagro, salientou que os índices de mortalidade infantil e de fome na Venezuela superam até mesmo os da Síria, país que vive uma guerra civil desde 2011. “Se isso não for um Estado falido, então não sei o que é”, diz Diego Arria, ex-embaixador venezuelano nas Nações Unidas de 1991 a 1994. Arria teve de se exilar em Nova York há um ano e meio. O regime de Nicolás Maduro emitiu uma ordem de prisão contra ele, depois de o ex-embaixador ter acusado o governo venezuelano de crime de lesa-humanidade na Corte Penal Internacional de Haia, na Holanda. Arria conhece o Brasil e sabe que o país também viveu a hiperinflação. Mas ele aponta uma diferença importante: o Brasil dos anos 80 produzia alimentos e medicamentos, enquanto a Venezuela precisa importar quase tudo que consome — incluindo 90 000 barris diários de petróleo leve dos Estados Unidos para misturar a seu óleo sulfuroso.
Ao lado da fragilidade econômica está uma brutal confusão institucional. Depois da eleição de uma Assembleia Constituinte, no dia 30 de julho — cujo resultado foi contestado por partidos de oposição e líderes mundiais —, a Venezuela passou a ter dois parlamentos. A Assembleia Nacional, dominada pela oposição, não reconhece a Constituinte. Já os chavistas querem que a nova Constituição transfira os poderes da Assembleia Nacional para os conselhos comunais, controlados pelo Partido Socialista Unido da Venezuela — o mesmo partido do governo. Outra proposta é esvaziar o Ministério Público venezuelano, que recentemente virou uma das principais forças de resistência às investidas do regime.
Nada disso é novo. Os chavistas vêm seguindo à risca a cartilha dos regimes autoritários antes dele. Os governos que começam embalados em políticas nacionalistas e desenvolvimentistas acabam esvaziando o Estado por dentro. Na estratégia de permanência no poder, criam estruturas paralelas que podem ser controladas mais facilmente. Foi assim com os sovietes que deram nome à União Soviética e com os conselhos locais e Comitês de Defesa da Revolução em Cuba, e, agora, com os conselhos comunais da Venezuela. A palavra de ordem da campanha do governo em favor da Constituinte, assimilada pela militância chavista, antecipou as medidas: a nova Carta vai “blindar” as missões, como são chamados os mais de 20 programas sociais do governo; os coletivos, bandos armados sobre motocicletas que abrem fogo contra manifestantes e fogem impunemente; e as milícias uniformizadas e também armadas que defendem o regime.
Aplicar o conceito de Estado falido à Venezuela de Nicolás Maduro não serve apenas para saciar a sanha classificatória dos acadêmicos. Tem consequências, do ponto de vista do direito internacional, para justificar a intervenção em um país sem que a medida seja vista como uma ingerência em sua soberania, diz Carlos Romero, professor de ciência política na Universidade Central da Venezuela. Para ele, está sendo construído um cenário para justificar o reconhecimento da oposição como o poder legítimo. “O que a oposição busca é um reconhecimento internacional do estado de beligerância do país e de sua legitimidade.” Os Estados Unidos saíram na frente e congelaram os bens de 13 autoridades venezuelanas na véspera da eleição. Como a advertência não fez Maduro recuar, o governo americano seguiu adiante e, no dia seguinte à votação, incluiu o próprio presidente venezuelano na lista. Com isso, Maduro entrou para o seleto clube de governantes que são alvo de sanções americanas ainda no poder, ao lado de Bashar al-Assad, da Síria, Kim Jong-un, da Coreia do Norte, e Robert Mugabe, do Zimbábue.
Ao anunciar o congelamento dos bens de Maduro, o secretário do Tesouro americano, Steven Mnuchin, disse que a Casa Branca consideraria “sanções adicionais” se o regime venezuelano continuasse no caminho da repressão e da ditadura. Maduro respondeu dizendo-se “orgulhoso” de sofrer as sanções e mandou de volta para o cárcere os líderes oposicionistas Leopoldo López e Antonio Ledezma, que estavam em prisão domiciliar.
Donald Trump: os Estados Unidos congelaram os bens de autoridades venezuelanas
Os Estados Unidos têm ainda outra opção na mesa: o embargo do petróleo. As empresas americanas compram aproximadamente 40% do petróleo venezuelano exportado — cerca de 700 000 barris por dia. Mas os especialistas afirmam que um embargo teria pouco ou nenhum efeito. A Venezuela não teria muita dificuldade de deslocar as vendas para a Índia e a China, que já compram 400 000 e 500 000 barris diários dela, respectivamente. O Catar, que é produtor de gás e está sob sanção de seus vizinhos e do Egito, seria outro comprador em potencial. Claro que nunca é simples substituir o mercado americano por outro da noite para o dia, ainda mais quando os clientes estão do outro lado do mundo. O fato é que uma eventual barreira americana dificilmente seria uma sentença de morte do regime. Por via das dúvidas, as refinarias americanas que processam o petróleo venezuelano aceleraram a produção, temendo um embargo.
Diante desse cenário, a alternativa mais provável é que a comunidade internacional continue a aplicar mais sanções individuais contra autoridades do governo venezuelano e também a vincular o regime ao narcotráfico e à corrupção. Neste último ponto, o Brasil é capaz de cumprir um papel decisivo. As delações da construtora Odebrecht indicaram pagamentos de propinas para o governo venezuelano, e a expectativa é que mais denúncias desse tipo devam surgir na esteira da Operação Lava-Jato. A combinação de acusações de corrupção com violações de direitos humanos, tráfico de drogas e quebra da ordem democrática pode render o reconhecimento a um governo transitório em algum momento.
Depois de um plebiscito organizado pela oposição em meados de julho, no qual 7,5 milhões de pessoas votaram contra a Constituinte, a oposição venezuelana vem sendo pressionada a formar um governo provisório. O deputado Juan Requesens, do partido Primeiro Justiça, afirma que os dirigentes oposicionistas estão em contato com a comunidade internacional para avaliar a disposição de outros países de reconhecer um governo de transição. “Já nomeamos magistrados para o Tribunal Supremo de Justiça e vamos renovar o Conselho Nacional Eleitoral e fazer um julgamento de Maduro”, diz o deputado. “Esperamos agora que a Europa e a Ásia também congelem os bens de Maduro porque tudo o que ele tem vem do crime.”
Enquanto isso não acontece, os manifestantes continuam a enfrentar nas ruas de Caracas o gás lacrimogêneo e as balas de borracha da Guarda Nacional Bolivariana, além da munição real das milícias chavistas — uma situação que se repete quase diariamente há quatro meses. Até o dia 30 de julho, foram registradas 130 mortes de manifestantes, além de centenas de feridos e presos. Uma solução pacífica e democrática, infelizmente, ainda parece distante.
http://exame.abril.com.br/revista-exame/a-falencia-de-um-estado/
Venezuela: Não faltam somente os bens de primeira necessidade nos supermercados da cidade, mas é difícil encontrar também dinheiro em espécie
Foi muito depressa. Não faz muito tempo, quando Hugo Chávez era vivo e comandava o país, o grande tema de debate entre cientistas políticos e observadores internacionais era se a Venezuela ainda podia ser considerada um Estado democrático, tamanha a interferência de Chávez e de seus seguidores nas instituições do país.
Hoje, o que se discute é se a Venezuela sequer ainda tem um Estado. O conceito de Estado falido, aplicado a países como Haiti, Somália e Síria, agora se lança sombriamente sobre o território venezuelano, onde estão as maiores reservas de petróleo do mundo, e que ficou conhecido no passado por ser uma alegre fábrica de misses e um paraíso para mergulhadores e turistas atraídos por sua formidável costa caribenha.
¿Que pasó?
A resposta é simples: um furacão chamado chavismo, cuja força destrutiva arrasou os setores produtivos — que nunca foram grande coisa, mas existiam —, aniquilou até mesmo a capacidade de extração da antes imponente PDVSA, a estatal do petróleo, e colocou a economia numa desordem que beira o caos. Isso fica claro para qualquer estrangeiro ou cidadão venezuelano em Caracas, a capital do país.
Não faltam somente os bens de primeira necessidade nos supermercados da cidade, mas é difícil encontrar também dinheiro em espécie, mesmo em meio a uma hiperinflação que deverá chegar a 720% neste ano. A situação desafia as leis da oferta e da procura, segundo as quais os preços só deveriam subir quando a moeda fosse abundante. Não é o que ocorre na Venezuela. Os preços sobem mesmo com a falta de dinheiro em espécie.
A situação social da população é ainda mais trágica do que a falta de produtos e de moeda. Em seu último informe, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, Luis Almagro, salientou que os índices de mortalidade infantil e de fome na Venezuela superam até mesmo os da Síria, país que vive uma guerra civil desde 2011. “Se isso não for um Estado falido, então não sei o que é”, diz Diego Arria, ex-embaixador venezuelano nas Nações Unidas de 1991 a 1994. Arria teve de se exilar em Nova York há um ano e meio. O regime de Nicolás Maduro emitiu uma ordem de prisão contra ele, depois de o ex-embaixador ter acusado o governo venezuelano de crime de lesa-humanidade na Corte Penal Internacional de Haia, na Holanda. Arria conhece o Brasil e sabe que o país também viveu a hiperinflação. Mas ele aponta uma diferença importante: o Brasil dos anos 80 produzia alimentos e medicamentos, enquanto a Venezuela precisa importar quase tudo que consome — incluindo 90 000 barris diários de petróleo leve dos Estados Unidos para misturar a seu óleo sulfuroso.
Ao lado da fragilidade econômica está uma brutal confusão institucional. Depois da eleição de uma Assembleia Constituinte, no dia 30 de julho — cujo resultado foi contestado por partidos de oposição e líderes mundiais —, a Venezuela passou a ter dois parlamentos. A Assembleia Nacional, dominada pela oposição, não reconhece a Constituinte. Já os chavistas querem que a nova Constituição transfira os poderes da Assembleia Nacional para os conselhos comunais, controlados pelo Partido Socialista Unido da Venezuela — o mesmo partido do governo. Outra proposta é esvaziar o Ministério Público venezuelano, que recentemente virou uma das principais forças de resistência às investidas do regime.
Nada disso é novo. Os chavistas vêm seguindo à risca a cartilha dos regimes autoritários antes dele. Os governos que começam embalados em políticas nacionalistas e desenvolvimentistas acabam esvaziando o Estado por dentro. Na estratégia de permanência no poder, criam estruturas paralelas que podem ser controladas mais facilmente. Foi assim com os sovietes que deram nome à União Soviética e com os conselhos locais e Comitês de Defesa da Revolução em Cuba, e, agora, com os conselhos comunais da Venezuela. A palavra de ordem da campanha do governo em favor da Constituinte, assimilada pela militância chavista, antecipou as medidas: a nova Carta vai “blindar” as missões, como são chamados os mais de 20 programas sociais do governo; os coletivos, bandos armados sobre motocicletas que abrem fogo contra manifestantes e fogem impunemente; e as milícias uniformizadas e também armadas que defendem o regime.
Aplicar o conceito de Estado falido à Venezuela de Nicolás Maduro não serve apenas para saciar a sanha classificatória dos acadêmicos. Tem consequências, do ponto de vista do direito internacional, para justificar a intervenção em um país sem que a medida seja vista como uma ingerência em sua soberania, diz Carlos Romero, professor de ciência política na Universidade Central da Venezuela. Para ele, está sendo construído um cenário para justificar o reconhecimento da oposição como o poder legítimo. “O que a oposição busca é um reconhecimento internacional do estado de beligerância do país e de sua legitimidade.” Os Estados Unidos saíram na frente e congelaram os bens de 13 autoridades venezuelanas na véspera da eleição. Como a advertência não fez Maduro recuar, o governo americano seguiu adiante e, no dia seguinte à votação, incluiu o próprio presidente venezuelano na lista. Com isso, Maduro entrou para o seleto clube de governantes que são alvo de sanções americanas ainda no poder, ao lado de Bashar al-Assad, da Síria, Kim Jong-un, da Coreia do Norte, e Robert Mugabe, do Zimbábue.
Ao anunciar o congelamento dos bens de Maduro, o secretário do Tesouro americano, Steven Mnuchin, disse que a Casa Branca consideraria “sanções adicionais” se o regime venezuelano continuasse no caminho da repressão e da ditadura. Maduro respondeu dizendo-se “orgulhoso” de sofrer as sanções e mandou de volta para o cárcere os líderes oposicionistas Leopoldo López e Antonio Ledezma, que estavam em prisão domiciliar.
Donald Trump: os Estados Unidos congelaram os bens de autoridades venezuelanas
Os Estados Unidos têm ainda outra opção na mesa: o embargo do petróleo. As empresas americanas compram aproximadamente 40% do petróleo venezuelano exportado — cerca de 700 000 barris por dia. Mas os especialistas afirmam que um embargo teria pouco ou nenhum efeito. A Venezuela não teria muita dificuldade de deslocar as vendas para a Índia e a China, que já compram 400 000 e 500 000 barris diários dela, respectivamente. O Catar, que é produtor de gás e está sob sanção de seus vizinhos e do Egito, seria outro comprador em potencial. Claro que nunca é simples substituir o mercado americano por outro da noite para o dia, ainda mais quando os clientes estão do outro lado do mundo. O fato é que uma eventual barreira americana dificilmente seria uma sentença de morte do regime. Por via das dúvidas, as refinarias americanas que processam o petróleo venezuelano aceleraram a produção, temendo um embargo.
Diante desse cenário, a alternativa mais provável é que a comunidade internacional continue a aplicar mais sanções individuais contra autoridades do governo venezuelano e também a vincular o regime ao narcotráfico e à corrupção. Neste último ponto, o Brasil é capaz de cumprir um papel decisivo. As delações da construtora Odebrecht indicaram pagamentos de propinas para o governo venezuelano, e a expectativa é que mais denúncias desse tipo devam surgir na esteira da Operação Lava-Jato. A combinação de acusações de corrupção com violações de direitos humanos, tráfico de drogas e quebra da ordem democrática pode render o reconhecimento a um governo transitório em algum momento.
Depois de um plebiscito organizado pela oposição em meados de julho, no qual 7,5 milhões de pessoas votaram contra a Constituinte, a oposição venezuelana vem sendo pressionada a formar um governo provisório. O deputado Juan Requesens, do partido Primeiro Justiça, afirma que os dirigentes oposicionistas estão em contato com a comunidade internacional para avaliar a disposição de outros países de reconhecer um governo de transição. “Já nomeamos magistrados para o Tribunal Supremo de Justiça e vamos renovar o Conselho Nacional Eleitoral e fazer um julgamento de Maduro”, diz o deputado. “Esperamos agora que a Europa e a Ásia também congelem os bens de Maduro porque tudo o que ele tem vem do crime.”
Enquanto isso não acontece, os manifestantes continuam a enfrentar nas ruas de Caracas o gás lacrimogêneo e as balas de borracha da Guarda Nacional Bolivariana, além da munição real das milícias chavistas — uma situação que se repete quase diariamente há quatro meses. Até o dia 30 de julho, foram registradas 130 mortes de manifestantes, além de centenas de feridos e presos. Uma solução pacífica e democrática, infelizmente, ainda parece distante.
http://exame.abril.com.br/revista-exame/a-falencia-de-um-estado/
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